sexta-feira, 27 de abril de 2012

«Brumas e Escarpas» #40

Defluxo, topadas e godelhões

Em criança tínhamos muitas alegrias mas também muitas tristezas e bastante sofrimento. Com uma alimentação deficiente, com condições de higiene limitadíssimas e sem assistência médica, caía-nos em cima tudo o que fosse doenças, achaques e sezões: sarampo, tosse, bexigas loucas, papeira, dedos degolados, bichas, diarreias, mamulos na cabeça, inchaços no pescoço e muitas outras maleitas, entre as quais figuravam a comichão, as lêndeas e os piolhos. No entanto, as doenças e achaques que mais nos apoquentavam, por serem mais frequentes, duradouras e dolorosas eram três: o defluxo, as topadas e os godelhões.

O defluxo atacava-nos quase diariamente e era terrivelmente incomodativo. Os lenços não abundavam e, por isso, vezes sem conta, aquele pegajoso e repugnante escorrimento de humores provenientes da inflamação da mucosa nasal, a que vulgarmente chamávamos ranho, tinha que ser recolhido com as costas das mãos ou com as pontas dos dedos e, de seguida, despegado nas paredes, nos muros, nas pedras dos marouços ou nos troncos das árvores. Para além destes incómodos físicos, éramos também vítimas inocentes de afrontas morais, por parte dos adultos, normalmente libertos de tão perturbante suplício e que não cessavam de nos alcunhar de “ranhosos” e “ranhetas”. Pouco agradável, convenhamos.

As topadas, porém, em dor física ultrapassavam de longe o defluxo. Pezinho descalço a circular nos sinuosos e desnivelados caminhos da Cabaceira, da Silveirinha, do Outeiro Grande e muitos outros, a abarrotar de pedregulhos e calhaus, era batidela certinha, com um dos dedos dos pés. Depois, um bom naco de carne levantada, sangue e mais sangue e umas dores fortíssimas. Por vezes, quando a pancada era mesmo grande, até a unha voava, o que duplicava a dor e garantia a desgraça de vir mais tarde a nascer, no lugar daquela, uma outra unha toda enrilhada, enegrecida e desajeitada. As topadas, no entanto, lá se iam curando com um chumaço de pano que se enrolava e amarrava à volta do dedo ferido, não tanto para o curar mas para o proteger de novo embate, o qual traria consequências ainda mais dolorosas. Por vezes os chumaços eram mais do que os dedos livres.

Finalmente a praga dos godelhões, uma espécie de línguas cheias de matéria e pus que nos cobriam parcialmente o corpo, que lhe davam um aspecto lânguido e asqueroso e cujo tratamento consistia simplesmente em espremê-las mas que também eram bem incomodativos e dolorosos, sobretudo quando se espremiam, sem, de seguida, serem desinfectadas.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

2 comentários:

Anónimo disse...

Poupem-me, pelo amor de Deus.

MILHAFRE disse...

«Se é para pagar tudo, então é melhor sermos independentes, não acham?»,

in Azores Forever

Sa~udações Açorianas