segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A minha ilha é outra ilha

Estava-se no princípio da década dos anos 70 e andava eu em Boston a estudar para um mestrado em Estudos Bilingues. As leituras de uma das cadeiras frisavam o facto de emigrantes, de diversos países, sofrerem um choque cultural quando, ao fim de muitos anos, regressavam à terra das suas origens e a encontravam bastante diferente daquela que haviam deixado. Muitas das pessoas conhecidas haviam desaparecido, o progresso havia transformado a freguesia, e vivia-se uma outra vida. Era-se um estrangeiro no seu próprio país. Estava-se deslocado.

Pessoalmente, já não ia às Flores há um quarto de século. Nos últimos quarenta e um anos, tinha visitado a ilha duas vezes, em dois fins-de-semana em que a chuva me proibiu passear. Era como se não visitasse a minha terra há quatro décadas. O Verão passado, regressei por cinco dias. Consolei os olhos e o espírito. Prometi voltar mais vezes. Vi muito, mas não vi tudo. Nada me chocou, mas fiquei agradável e alegremente surpreendido com o progresso da ilha e a qualidade de vida da sua gente. A circunstância de ter assistido à Festa do Senhor Santo Cristo, na minha freguesia, a Fazenda das Lajes, também foi um pormenor que me tocou a sensibilidade. Aqui, apercebi-me, de imediato, do cosmopolitismo da freguesia e da ilha – vi fazendenses residentes no Canadá, América, Continente português, e demais ilhas dos Açores.

A ilha está linda e os seus habitantes e governantes evidenciam, em preto e branco, a qualidade que desde há muito lhes é atribuída – inteligência. Cinco dias nas Flores, não me deu para ver e informar-me exaustivamente de todas as mudanças que hão ocorrido nos últimos 40 anos nesta parcela ocidental da Europa, contudo registarei algumas das mais óbvias.

Para já, chega-se às Flores de avião, isento do balanço das lanchas e do cheiro da gasolina. Em Santa Cruz, será desnecessário procurar-se o restaurante do Sr. Vitorino América, como também nas Lajes já não se encontra a loja do Sr. João Germano de Deus em frente da casa do José da Teresa. As mudanças são enormes, ao ponto de muitos lugares se tornarem irreconhecíveis, como por exemplo o local da Ribeirinha, na Fazenda das Lajes - lugar onde nasci.

Rasgaram-se estradas novas, em múltiplas direcções, abriram-se agradáveis trilhos que permitem saudáveis circuitos e passeios, construíram-se e reconstruíram-se muitos edifícios públicos assim como casas de habitação. Criaram-se novas ruas. Os portos das Lajes e de Santa Cruz tomaram uma aparência e funcionalidade radicalmente diferentes. O espaço turístico aumentou consideravelmente com a construção de hotéis, pousadas, residências, apartamentos turísticos como os Apartamentos da Rádio Naval, e a criação do turismo de aldeia, como é o caso da Cuada. Ao dispor do turista, já há também uma abundância de restaurantes, snack-bares, bares e cafés. Pude verificar serviço dispensado com profissionalismo. Não me posso esquecer do restaurante Pôr-do-Sol na Fajãzinha, onde o cliente fica tão surpreendido com os sabores como com o ambiente – a decoração está muito a gosto. A existência de mapas e guias turísticos adequados também já não permitirão que o turista se perca, além de o orientarem para os pontos de maior interesse.

Em resumo, diria que a primeira impressão é uma de admiração perante a nova construção, a abertura de estradas principais e secundárias, a acessibilidade a diferentes lugares, trilhos, miradouros, áreas de piquenique, instalações sanitárias, ausência de gente e presença de carros, e o embelezamento de diferentes recintos. A sumptuosidade e beleza da ilha assombram-nos. O homem florentino, nestas últimas décadas, tem sabido complementar a magnificente obra do Criador. A minha ausência das Flores, por uma quarentena de anos, serviu-me para reafirmar conscientemente a sua singularidade e compreender o cantar da Natureza, feito por poetas, filhos da ilha – Roberto Mesquita, Alfredo Lewis, Pedro da Silveira, e Gabriela Silva.

Uma série de serviços, lançados nos anos da minha ausência da ilha, colocou-a na linha do progresso de todo e qualquer lugar civilizado. Sei que numa Região tão pequena, tudo isso só pôde ser conseguido com o muito esforço, persistência, e inteligente coordenação dos presidentes da Câmara e políticos locais, assim como a voz dos cidadãos. Esses serviços são inúmeros: polícia e bombeiros, bancos e caixas automáticas, melhoramento dos serviços de saúde, lares para a terceira idade, construção de escolas, ginásio, parques infantis, piscinas, biblioteca, museu e pólos museológicos, clubes informáticos, miradouros, minimercados, e serviço de transportes.

Parece-me que todo ou quase todo o cidadão florentino goza de uma casa confortável. A casinha foi substituída por um quarto de banho moderno e a lareira de lenha por um fogão. A dona de casa, de hoje, com certeza que julgaria impensável ter que cozer o pão de milho (o de trigo era para poucos) ou o bolo do tijolo para o consumo diário da sua casa.

A lavoura, outrora manual, agora é mecânica. O arado foi substituído pela máquina – o lavrador pelo condutor. A terra lavradia tornou-se terra de pastagem. Certos géneros alimentícios, outrora produzidos nas Flores, agora vêm de fora. A fruta até chega a vir da América do Sul. Está-se perante um abastecimento de alimentação inconcebível não há muitos anos.

Uma das consequências da diminuição da população foi a lógica concentração de serviços. Ao nível escolar, reduziram-se as escolas e este ano, pela primeira vez, ambos os concelhos da ilha ficarão servidos com todos os graus de escolaridade. Ao nível religioso, o serviço pastoral está nas mãos de três sacerdotes. Muitos ainda se lembram do tempo em que cada freguesia tinha um padre e um professor.

A sensibilidade das pessoas também há mudado em certas áreas. Por exemplo, o Lar tornou-se uma opção para a terceira idade. A casa funerária já é o lugar para o último adeus. Nesta ordem de ideias, também observei que os cemitérios, num tom menos fúnebre, vestiram-se de verde para receber os seus mortos.

O acesso à educação grátis, para todos, deu um passo gigantesco na formação geral do aluno. Passou-se da 4ª classe antiga para o 12º ano, o que representa o ensino secundário completo. Pelo que consegui apurar, a maioria dos florentinos, em idade escolar, sabe aproveitar esta oportunidade em favor da sua promoção pessoal. Finalmente, o ensino superior passou a ser prerrogativa de muitos. Encontrei-me com uma senhora que está acabando de formar o seu quinto filho. No tríduo da festa do Senhor Santo Cristo, informaram-me que o organista é médico e é um de três irmãos a estudar na universidade e que todos trabalham de Verão, ao lado dos pais, na faina agrícola. Este estilo americano assinala uma diferença da época em que o estudante não fazia nada, além de registar a marca da garra forte e coordenada de quem se esforça para conseguir um objectivo.

O campo da publicidade é outra área onde a diferença é marcante. Creio que tanto o 25 de Abril como a expansão da educação contribuíram para esta explosão. Não ando a par de todas as publicações que os florentinos têm produzido nestes últimos anos, mas o que observo já é suficientemente volumoso. Vários autores têm escrito muito sobre a ilha das Flores, sua história, costumes, e tradições. (Acabo de ler o livro «Espírito Santo em Festa», de Aurélia e Manuel Fernandes, onde aprendi muito sobre um assunto do qual sabia pouco). Tem-se escrito prosa e poesia. Tem-se feito fotografia. Há escritores florentinos residentes dentro e fora da ilha. A obra de alguns é de projecção nacional e internacional. Tudo isso seria tema para um artigo longo.

Em matéria de tecnologia, notei que o florentino acompanha o ritmo mundial. Se considerarmos que toda a criança portuguesa, do primeiro ano, já tem nas mãos um portátil, isso põe a criança florentina à frente da criança americana. Vi muita gente a usar telemóveis com diferentes níveis de sofisticação. Sei que a rede de internet já entrou em muitas casas. Na biblioteca de Santa Cruz, vi pessoas de todas as idades em frente do computador. Nas Lajes, dia após dia, vi os computadores do Centro Informático a serem utilizados. Tudo isso gratuitamente. O Verão passado, quando viajei por varias cidades do Brasil e precisei de usar o computador, tive que pagar um tanto, por um dado período de tempo.

Não há pasmaceira nas Flores. O florentino não dorme, pelo contrário, vive a reputação que desde há muito goza – a de ser inteligente. O florentino, desde a sua pequena extensão de terra, estende os olhos sobre a vastidão do universo e actualiza-se sobre os diversos acontecimentos do teatro internacional. O florentino apresenta-se como uma pessoa informada e independente. Tem uma mente cosmopolita com os respectivos tons de multi-culturalismo e multilinguismo. Além da informação que adquire através dos meios de comunicação e das viagens que empreende, já vive, lado a lado, com emigrantes que voltaram à sua terra e com estrangeiros que se encantaram com a ilha. Todo este intercâmbio e a presença dos franceses na Base Francesa das Flores concorreram para uma expressão multi-linguística. Segundo me consta, há um considerável número de florentinos que fala francês e inglês. O regresso de jovens imigrantes, residentes no Canadá e América, assim como a CNN parece terem o seu impacto linguístico.

Nos tempos modernos vai-se à SPA para relaxar. (SPA, do latim, “sanus per aquam”, saúde por meio da água). Um fim-de-semana numa boa SPA é bastante dispendioso. Dispendiosos ainda são os cd’s que se compram com o som das águas do mar, dos riachos, das ribeiras, dos ventos, e das aves. “As Flores” surge como uma ilha toda SPA na tranquilidade das suas sete lagoas, no correr voluptuoso das águas das suas ribeiras, no esconder das ondas do mar nos calhaus das suas rochas, nos mosteiros das suas montanhas, no aroma das suas flores e, sobretudo, no silêncio misterioso de muitas das suas localidades. Definir este silêncio é o que eu não sei fazer numa só palavra. Quando procuro a sua essência, encontro-me com um elenco de adjectivos que nem individual nem conjuntamente expressam a sua quididade: mágico, profundo, relaxante, aquiescente, inspirador, misterioso, interior, íntimo, ad infinitum.

Segundo a Lenda da Sereia, esta ilha-toda-SPA, nas águas longínquas do Ocidente europeu, no princípio, atraiu e deu felicidade à rapariga ruiva encontrada no mar da Ponta Ruiva. Hoje, imigrantes, açorianos, continentais, e europeus continuam a maravilhar-se com as belezas naturais de uma ilha que só sabe existir florida.


Artigo de opinião da autoria de Nuno A. Vieira, originalmente publicado no jornal da diáspora «Portuguese Times» (edição de 2 de Setembro de 2009), mas posteriormente também disponível no blogue «Comunidades» da RTP/Açores.
Saudações florentinas!!

8 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns Nuno,por este magnífico artigo,através do qual,numa escrita ao correr da pela, mas de boa qualidade,retrata a nossa Ilha com um positivismo,porventura clarividente,que é pouco comum ouvir.
Será que somos demasiado miserabilistas ou é mesmo necessário sair da Ilha para olhá-la correctamente,como fizeram o nosso Eça e outros?
De qualquer maneira,penso que há aspectos a melhorar e falta-nos gente para a Ilha ter outra dinâmica económica e social. Mas vamos falando nisso.
Cumprimentos.

Anónimo disse...

É bom perceber como foi e agora como é. Com testemunhos sérios, como este é.
Passamos a vida a cramar, como se vivessemos no pior dos mundos. E afinal, se olharmos um bocadinho para traz, vêmos que não é bem assim.

Anónimo disse...

A Ilha das Flores já istá muito bem,
vive-se lindamente aqui neste cantinho.
Parabêns pelo artigo publicado.

Anónimo disse...

Gostei bastante deste testo e da simplicidade da escrita e como é observado quotidiano dos florentinos, (penso que numa epoca de verão).

O ri alçar de uma evolução á americana, talvez não será o que melhor se enquadra na identidade dos Florentinos, mas vivemos num mundo cada vez mais global, em que identidades se perdem com as influencias de outros povos(no caso das flores pessoas com idade avançada, europeus e americanos imigrantes), e sem termos uma boa identidade, cria uma sociedade bastante diversificada, ou bastante influenciada, tornando os florentinos diferentes, e com o passar do tempo aumentara as diferenças.

Nas ilhas sempre fomos viajantes, por isso os nossos antepassados amarrarão por aqui, e como qualquer viajante não para, há sempre vontade de viver por este mundo e reconhecer a sua terra, Cada vez mais os povos destas pequenas ilhas terão muito a ganhar se aproveitassem a experiência dos seus viajantes e dos seus imigrantes.

Seria interessante o debate entre os viajantes, imigrantes e os que vivem por aqui, todos considerados florentinos.

Anónimo disse...

Sei que vou ser crucificado por dizer isso mas aqui vai:
Penso que o artigo está escrito nao pelo autor mas sim pela saudade que ele tinha da ilha, como ele proprio disse ha 40 anos que não ia as flores ou pelo menos a 40 anos que não ia mais de 5 dias as flores.
Eu sai das flores á 5 anos e volto todos os anos,graças a deus.
Mas ao voltar vejo sempre as mesmas pessoas, as ruas das freguesias completamente vazias, existem freguesias que estão quase, mesmo quase despovoadas.
Tenho contacto com os jovens da minha idade das flores nas redes sociais e 95 por cento deles está fora das flores.
E em relação ao facto de existirem telemoveis e internet nas flores, para mim não passa de uma coisa banal, logicamente não será tão banal se comparado com 40 anos atras, que foi quando o senhor saiu da ilha.
Resumindo, na minha opinião o artigo está exelente, sem duvida mas, muitas dessas palavras são apenas saudades.

Anónimo disse...

Será que o amigo deste artigo encontrou uma outra ilha das Flores algures perdida neste vasto atlantico?
Não consigo encontar esta ilha que ele descreve como sendo a ilha das Flores!
Entendo-o perfeitamente pois é sempre bom voltar a casa, reviver o passado e presenciar o presente mas nada de exageros. Esta ilha continua cada vez mais pequena e mais fechada ao exterior graças a este governo desgovernado do partido socialista. Caminhamos novamente a passos grandes para uma ditadura, justifico esta afirmação do seguinte modo: basta olhar para o exemplo da autarquia de santa cruz das flores, uma comunista junta-se a um socialista para resolverem os seus assuntos financeiros!
O povo é cego, surdo, mudo, ignorante...nada mudou, o marasmo veio para ficar, já está enrraisado na cabeça deste povo rude, ignorante...

Anónimo disse...

há cada comentador que não sabe dar o valor da saudade da ilha e vem para aqui escrever baboseiras que tal ignarancia...

Anónimo disse...

SAUDADE DA ILHA---Saudade não tem forma nem cor; não tem cheiro nem sabor. Fala-se nela,mas não se vê;só pensa nelaquem acredita . Ela é parte da ausência;e é parte do amor;ela tem realidade,mas quem a tem sente dor,uma dor miudinha, que cresceno coração,e que nuncavem sózinha...Acompanha a solidão;quem a sente nunca esquece, nem nunca esquecerá,o sentimento que não adormeçe, por alguem que não está!