domingo, 28 de dezembro de 2014

«Brumas e Escarpas» #82

O Caderno Diário

A dona Madalena era muito exigente, excedendo-se frequentemente em repreensões, castigos e reguadas. Eu pelava-me de medo e tremia como varas verdes. Não era pela preguiça ou desmazelo nos estudos, nem sequer pelos erros ou má caligrafia, parâmetros de avaliação em que era exímio, chegando mesmo nas lições de cor a ser o melhor da classe. Em História, desembuchava os reis de Portugal a eito e com os respetivos cognomes. Em Ciências definia, com rigor, cada órgão ou parte do corpo humano e em Geografia papagueava rios, afluentes, linhas férreas e até os países da Europa com as respetivas capitais. Onde eu prevaricava era na limpeza e asseio do Caderno Diário. Não havia mês, semana, talvez mesmo dia, em que não me apresentasse junto à secretária da senhora professora com o caderno sujo e besuntado. Esta ignomínia, que a dona Madalena julgava de falta de cuidado, era fruto das precárias condições que reinavam lá casa. Isso revoltava-me, porque os outros tinham sempre o caderno limpinho e asseado, embora não me igualassem na leitura ou nas lições de cor. Mas quanto à limpeza, o meu caderno era o pior da classe. Uma autêntica vergonha! Todos os outros primavam por uma limpeza que acentuava mais e mais a imundície do meu.

A minha casa possuía umas instalações tão exíguas e precárias que me forçavam a fazer os trabalhos que a senhora professora mandava, em cima da mesa da cozinha, onde remanesciam migalhas de pão, restos de comida e pingos de café, de leite e de graxa. Além disso, a cozinha era mal iluminada de dia e, à noite, acendia-se uma pequena candeia alimentada a enxúndia de galinha, em que flamejava uma chama frouxa e titubeante que mal permitia divisar pessoas e objetos. A mobília era constituída por uma mesa, meia dúzia de bancos e um pequeno armário. Pelo chão abundavam sacos de serapilheira com batatas, inhames, cebolas e maçarocas de milho. Atrás da porta, o balde do porco, onde se iam armazenando os restos de comida, as cascas das batatas, dos inhames e as lavagens que, depois de cheio, constituía a principal refeição do suíno. Por baixo, uma loja dividida entre arrumos e estábulo.

Era nestas instalações que montava sala de estudo e, por essa razão, o meu caderno diário se transformava numa execrável e hedionda sujeira.

Certo dia, em que o esquecera sobre a mesa, caíram-lhe em cima umas brasas que saltaram do ferro de passar roupa, queimando, parcialmente, meia dúzia de folhas. Estarreci. Com que cara me iria apresentar, no dia seguinte, à dona Madalena, tendo o caderno naquele estado? Ia ser o bom e o bonito! E não me enganei. Para além da chacota de que fui alvo, levei umas reguadas com a rigorosa imposição de, sem falta, ter que arranjar um caderno novo e passar tudo a limpo, para o dia seguinte.

Matutei a tarde inteira na forma de resolver o imbróglio em que estava exprobrado, apesar de inocente e que passava pela compra de um caderno novo, o que me forçaria a ter que desenvencilhar uns cinquenta centavos. Como só tinha amealhado trinta, recorri à generosidade de minha avó que me abonou os vinte que faltavam.

Ao fim da tarde, sentei-me à mesa e comecei a passar tudo a limpo. Estava prestes a chegar à última folha quando, de repente, me emborcaram uma tigela de café sobre o caderno que eu acabara de passar a limpo. De nada valeram protestos, choradeiras e reclamações. E tive que me apresentar na escola, na manhã seguinte, com aquela espurcícia em riste, imaginando o que me esperava.

Foi então que, num gesto de grande nobreza, o Amâncio, apercebendo-se da minha angústia e atrapalhação, me acalmou. Desde há muito que eu era o seu maior amigo. Tirou um caderno limpo e novo da sua pasta e, com excessivo cuidado e engenho, cortou-lhe a capa, pedindo-me que na mesma escrevesse o meu nome. De seguida, cortou a capa do seu caderno, substituindo-a por aquela em que eu havia escrito o meu nome, colando-a, muito disfarçadamente, com goma-arábica. Quando, algum tempo depois, a senhora professora me chamou, ele, encorajando-me e incentivando-me com grande convicção, disse baixinho, perante a minha perplexidade:

- Vai! Vai! Não sejas parvo! Ela não vai dar por nada.
E não deu. Apenas, em tom de censura, me recriminou:
- Hum! Que caligrafia é esta?! Nem parece a tua – e, de imediato, perguntou - Foste tu que passaste?
- Fui, sim, senhora professora. É que... passei tudo à pressa...
- A caligrafia não está grande coisa. Mas lá que está limpinho, está – concluiu, sem hesitar, a senhora professora.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

6 comentários:

Anónimo disse...

Ler esse texto é muito bom, me parece tão vivo, tão real, que volto pros meus oito anos de idade. Obrigado, senhor Carlos Fagundes.

Anónimo disse...

Também acho. É igualmente bom para que as novas gerações dêem valor ao que hoje têm e percebam o que nós passamos. Não é para amiaça-las de que tudo há-de voltar a ser assim, à boa maneira do velho do Restelo. Não, não vai, não,apesar das dificuldades. E ainda bem.
Parabéns Carlos Fagundes, por mais este magnífico texto que retrata uma época e também pela forma humilde como o faz.
Bem haja.

Anónimo disse...

Ao Sr. 01:26:00
"amiaça-las" no meu tempo de escola, implicava sete bolos com a régua grossa e reclusão no intervalo.

Anónimo disse...

Obrigado. Gostei muito do texto. Também eu me lembro de usar a ardósia e a goma arrábica. Mas, tenho um pequeno reparo a fazer: será que em vez de "parvo" não terá sido o termo "tolo"? É que em miúdo nunca ouvi ninguém nas Flores usar o termo "parvo". Era um termo continental que só apareceu nas Flores através da Radio Naval. Usava-se "tolo", "burro", "teimoso" (no sentido de "casmurro").

Bom ano!

Anónimo disse...

Sempre ouvi dizer que palavra puxa palavra.É isso o diálogo. Mas infelizmente neste espaço nem sempre é assim,sobretudo quando estão em causa questões da maior importância para a nossa Terra.
No entanto,hoje foi; e não para me questionar sobre o que escrevi,que seria o mais importante,o tal debate de ideias,mas como o escrevi.
Tem razão, Anónimo de 1/1,01H49.Enganei-me.O verbo é ameaçar.
Mas, tal como o reparo do Anónimo das 11H54 e seus fundamentos,que me parecem discutíveis,pois quem sabe que vivências teve a professora,que possam ter influenciado o seu vocabulário,e até admitir o termo como uma forma de expressão do autor e não como uma reprodução exacta do que se passou há dezenas de anos,o certo é que um e outro, prendem-se com o acessório, esquecendo o essencial.Não é que isso seja sensurável,mas parece-me gratuito e inútil.

Anónimo disse...

Como referi "amiaça-las" no meu tempo de escola, implicava sete bolos com a régua grossa e reclusão no intervalo.
Nuns casos a coisa resultou mas noutros, como se vê, não.
Esta brincadeira, que não teve intensão de ofender, mostra que os castigos corporais, muito usados no sistema antigo, não resultavam, porque propiciavam o medo, não incluíam os mais débeis, e davam azo a descriminação na aplicação de castigos.
Muita injustiça se cometia.
Muitos louvores se davam a quem decorava a tabuada, sem perceber o porquê dos números, e muita tareia levava quem não a decorava porque descobria ser mais fácil fazer contas.
Foram tempos que deixaram saudades pela verdura dos anos, nunca pela escola castradora que nos davam.
E o que é que o anterior sistema nos dava a seguir à escola?
Os que tinham posses, prosseguiam estudos na Horta ou em Angra, com saindo de casa aos 11-12 anos.
Os inteligentes, sem posses, mas com pais de visão, iam para os seminários da Praia da Vitória e de Ponta Delgada, em regime de internato.
Os que não tinham posses, rudes ou inteligentes, ficavam-se por cá, seguindo a profissão do pai.
A nossa grande conquista dos últimos anos foi dar oportunidades de formação a todos: ricos, pobres e remediados.
Mas não nos devemos contentar só com isso.
Os tempos mudaram.
A nossa Universidade não se deve ficar por S. Miguel, pela Terceira e pelo Faial. As outras ilhas também tem direito.
As novas tecnologias permitem que o saber possa chegar com qualidade a qualquer ponto do arquipélago, através de videoconferência ou de outras formas de ensino à distancia.
Será que as nossas Camaras Municipais já se aperceberam disso?