sábado, 16 de julho de 2011

«Brumas e Escarpas» #24

João Lizandro e a Estrada da Ponta da Fajã

No lugar da Ponta da Fajã vivia antigamente um homem já de idade avançada, chamado João Lizandro. Casado e pai de um filho, apesar de constar pela freguesia de que teria muito dinheiro, vivia no entanto com aspecto de pobre. Mas tinha bom coração o João Lizandro e era tão religioso que até mandou construir, a expensas suas, uma pequenina capela, em madeira, bem junto à Rocha e dedicada à Senhora de Fátima. Cuidava o devoto senhor, que se os que subiam a Rocha invocassem a protecção da Virgem, haviam de ser livres de quedas, derrocadas e outros perigos, que ali eram frequentes. O João Lizandro vestia sempre a mesma roupa, andava habitualmente descalço e com a barba por fazer, locomovendo-se amparado a um enorme e grosso bordão, apesar de o fazer ainda com bastante agilidade. Mas o que mais caracterizava esta enigmática figura era o interesse que colocava continuamente na defesa dos interesses da localidade onde vivia, ou seja, da Ponta. Esta enorme vontade de defender a sua terra de tudo e de todos, de lutar pelo seu progresso e pelo bem-estar da sua população, levou-o, segundo se dizia, a iniciar uma série de troca de correspondência com Salazar. Pelos vistos o chefe do Governo português da altura, possivelmente através de algum secretário, respondia-lhe e João Lizandro foi adquirindo aos poucos a fama e o estatuto de defensor-mor da dignidade, da verdade e da honestidade, junto do Presidente do Conselho. Uma espécie de bastião na luta contra a corrupção, pois sempre que necessário, por este ou por aquele motivo, escrevia a Salazar.

Quando o almirante Américo Tomás, no início da década de 1960, visitou a ilha das Flores, deslocou-se também à Fajã Grande, acompanhado do ministro das Obras Públicas, engenheiro Arantes Oliveira, do Governador Civil da Horta, Freitas Pimentel e de todas as autoridades políticas, militares e religiosas da ilha. Acompanhado de toda esta comitiva, Sua Excelência apeou-se à Praça, onde o esperava muito povo. Desceu a rua Direita, toda engalanada e com os sinos a repicar, a Senhora da Saúde a tocar, abanando a uns e sorrindo a outros, terminando o percurso pedestre em frente ao portão do Gil, junto à Casa do Espírito Santo de Baixo. Foi então que João Lizandro, descalço e com a roupinha toda rota e remendada, de bordão na mão e casaco ao ombro, furou a segurança e aproximou-se do mais alto magistrado da nação. Alguns elementos da guarda-fiscal ainda tentaram impedi-lo, mas sem sucesso, dado que Américo Tomás, talvez impressionado pelo seu aspecto original e genuinamente popular, já o chamara para junto a si, cumprimentando-o. João Lizandro estendeu a mão suja e calejada ao presidente e, sem demoras, apontando para Rocha da Ponta, solicitou-lhe:

- O sinhô tá a vê aquela rocha. Pois eu e mais de cem pessoas moramos ali debaixo daquela desgraça e nam temos sequer ua estradinha pra lá chegar, temos que vir a pé prá qui pa depois apanhá um carre prá vila ou prás lajes. E os doentes tem que sê carregados às costas. O sinhô, por alma dos seus, mande fazer uma estradinha prá gente da Ponta.

Américo Tomás ouviu atentamente, mantendo a mão do velho Lizandro apertada pela sua e, quando ele terminou, olhou de soslaio para o ministro Arantes Oliveira que logo fez um gesto assertivo com a cabeça, enquanto Freitas Pimentel, furioso, batia com o pé no chão, dizendo:

- Querem uma estrada?! Então já não têm aqui uma, bem nova e bem boa!?

O Presidente entrou para o automóvel e seguiu até ao Porto, onde parou, junto ao farol, para apreciar o mar, a rocha, as quedas de água e o verde dos socalcos e andurriais. De seguida partiu para as Lajes.

Passado algum tempo foi construída a estrada para a Ponta. Se foi ou não devido ao pedido do João Lizandro nunca se saberá. Mas o facto é que na altura, na freguesia, todos acreditavam que a estrada se construiu graças ao pedido que João Lizando fizera ao senhor Presidente da República, quando ele visitou a Fajã.


Carlos Fagundes

14 comentários:

Anónimo disse...

Não sou da Ponte nem da Fagã mas acredito que foi o pedido do Senhor João Lizandro que levou a estrada até à Ponte, nesta altura eu andava na escola na Vila das Lajes e na actual Avenida do Imigrante foi feito um barco que atravessava avenida e eu mais colegas de escola estavamos em fila e de bata branca que era obrigatorio naquela altura até ao 25 de Abil a ver passar Américo Tomaz.

Anónimo disse...

Eu sou da Ponta mas desconhecia essa pasagem. Louvo o tio João Lizandro pela sua coragem.
A minha avó tambem escreveu a Salazar, pedindo ajuda para o filho que tinha um bébe e a casa deles não tinha condições para o bébe. Ela recebeu resposta dizendo que pedisse ajuda á assistência social. Certamente a assintência social já existia nas Flores nesses anos, mas não era usada para os pobres.

A indústria da pobreza sempre deu lucro! disse...

No Faial quem chefiava a Assistência era a senhora do Sr. Governador Civil,mas quem beneficiava com a assistência aos pobres não eram estes...

É como hoje.

Anónimo disse...

Este Senhor João Lizandro merecia ter uma rua com seu nome, Homem de grande coragem e lutador como aqui diz.

Anónimo disse...

Eu desconhecia quem chefiava a assistêcia no Faial, mas o que vai à volta vem hà volta. ouvi dizer pelos vizinhos que toda a familia acabou como pobres.

Anónimo disse...

não era só no Faial era nas Flores Corvo Pico.

Anónimo disse...

Quem sabe se nesses anos a assistência sevia era para bolças de estudos????

Anónimo disse...

Lembro-me aqui nas lajes uma criança com o nome Anibel que brincava-mos juntos morreu de apendece ou melhor morreu á mingua que os pais não tinham dinheiro para ir ao médico. isto passou-se em 1962 e até hoje nunca me saiu da memoria este caso.

Os Açores deram um grande salto. Devemos reconhecer isso! disse...

Hoje felizmente não se morre à míngua.

Ainda há 15 ou 20 anos eu via grandes grupos de crianças vindas de Rabo de Peixe e noutras freguesia que vinham pedir para Ponta Delgada, principalmente à porta do Santuário do Sr. Santo Cristo.

Felizmente esses tempos já lá vão e agora o que é preciso é arranjar trabalho para toda esta juventude que sai das escolas e das universidades.

Anónimo disse...

O pobre do Anibel morreu por falta de recursos financeiros... Grande crueldade, deixar uma criança sofrer até morrer. No entanto a assintência social que devia o ter ajudado sem favor nem esmola pois esse dinheiro era do governo para ajudar os pobres não viu nada. O dinheiro que devia ter sido usado para salvar o Anibel foi comido pelos gatos gordos.

Anónimo disse...

Desconhecia a faceta do tio João Lizandro,sim senhor ele teve grande coragem naqueles tempos tão dificeis que não havia democracia e liberdade para se poder dizer o que se sentia,não me digam que o Governador Civil do Faial que era contra a estrada para a Ponta???devia ser um bom papão esse senhor,cambada de fascistas.

Anónimo disse...

O governadoe talvez não era contra a estrada da Ponta mas primeiro nós depois vós. A familia era grande e tinham que ser ajudados.
Aí vai a estrada da Ponta e muitos outros benefícios que foram dados por pronto e nunca foram feitos.

Anónimo disse...

Amigo,antigamente era assim,poucos mandavam e muitos obedeciam,não havia voz do povo,raramente alguem se atrevia a falar com uma autoridade,era mesmo fascismo puro,a pide era pior que cães raivosos contra a população,felizmente hoje se pode dizer alguma coisa sem medo,louvo esse senhor João Lizandro pela coragem que teve.

Anónimo disse...

Estes tempos são sempre bons de recordar apesar do terem cido dificeis trazem sempre alguma coisa de bom. Eu se fosse Presidente da Camara nomeava duas ruas com o nome do Anibel e do João Lizandro que bem merecem e retirava ruas com nomes de Padres.