terça-feira, 9 de agosto de 2011

«Brumas e Escarpas» #26

Maria e as Bulas Papais

Maria fora habituada desde tenra idade a ajudar a mãe nas tarefas domésticas e a cuidar dos irmãos mais novos. Maria apesar de criança já trabalhava arduamente e só descansava quando ia à escola onde, com uma inteligência prodigiosa, aprendia tanto ou mais do que as outras meninas. Maria, de mãozinhas roxas de frio, acarretava baldes de água da fonte e esfregava com escova e sabão o chão de madeira carcomida e remendada da sua casa. Maria de pés descalços levava à cabeça cestos cheios de roupa suja, lavava-a na ribeira e estendia-a ao Sol do estio. Maria, de olhos adormecidos porque a noite era curta, levantava-se de madrugada, acendia o lume e varria, limpava e clareava a casa, abrindo-lhes portas e janelas à luz clarificante das madrugadas primaveris. Maria, menina dos pés descalços, corria os campos ao sabor dos ventos e das tempestades. Maria menina, sentia cansaço, fadiga, dor, sofrimento, angústia e achava o Mundo injusto.

Maria tornou-se mulher quando era menina e nem sequer teve tempo para ser criança e para brincar. Maria ficou órfã cedo, muito cedo, cedo demais. E Maria ainda mais mulher se tornou, quando afinal continuava menina porque mais conta tomou dos irmãos, mais lavou, esfregou, cozinhou, varreu, limpou, sacudiu, espanejou, areou, arrumou e até rachou lenha, decidindo, por si própria, que a partir de agora, mesmo continuando a ser menina, seria a senhora e a dona da casa. Maria não se limitava a desempenhar todas as tarefas apenas dentro de portas mas também ajudava nos campos, no semear e acarretar do milho e das batatas, no plantar das couves e das cebolas, no apanhar do trevo e no acarretar da lenha. Maria também fez topadas nos dedos, teve sarampo, tosse, bexigas, defluxo e “godelhões”. Maria meteu estrepes nos pés, fez golpes nos dedos e até caiu e partiu três dentes.

Maria fez tudo o que uma mãe fazia. Maria até fez mais porque fez de senhora, de dona de casa, de filha, de irmã, de amiga e até de pedagoga, porque se esqueceu de que ainda era criança. E ao seu redor já mais alguém lhe lembrou que afinal ela também era criança.

Maria, porque era criança, também ia à catequese e à missa aos domingos, com a cabeça coberta com um mantinho de seda branco. E um dia, do alto do púlpito, Maria ouviu uma coisa estranha! Ouviu anunciar que era pecado grave comer carne às sextas-feiras, mas que ali, na sacristia da igreja, estavam à venda os indultos e as bulas do Santo Padre, os quais autorizavam os cristãos que os comprassem a comer carne em todas as sextas-feiras do ano, excepto nas da Quaresma e nas Têmporas. Quem não as comprasse e comesse carne nesses dias cometia um pecado gravíssimo e sujeitava-se à condenação eterna. Por isso todos, mas mesmo todos os bons cristãos deviam comprar as bulas para se salvarem, agradarem a Deus, cumprindo assim os Mandamentos da Santa Madre Igreja!

Maria ouviu, ouviu muito bem e jamais se esqueceu, mas hesitou. Hesitou simplesmente porque em sua casa não havia nem carne nem dinheiro! Dinheiro? O pouco que havia era todo para a loja da senhora Dias. Carne? De vaca só pelo Espírito Santo e de galinha só na noite de Natal. Seria pela carne de porco? Mas a salgadeira já ia a mais de meio, a linguiça já quase se acabara e já se via o fundo da panela dos torresmos. “E a talhada do toucinho que colocas no caldo de couves com feijão?” – lembrou-lhe uma vizinha. “E a colher de graxa que deitas na sopa ou com que fazes o refogado para o mangão?” – perguntou uma tia. “Tudo isso contava como se fosse carne?” “Oh, se contava!...” “Era carne, carninha, lá isso era.” Por isso Maria, num esforço gigantesco, decidiu juntar algumas moedas para evitar o pecado e a condenação eterna da sua família. Substituiu o petróleo do candeeiro pela graxa de fritar o peixe, já velha e rançosa, na candeia da cozinha, reduziu a colherada do café e aumentou a das favas torradas e da chicória e até, à ceia, mingou o leite nas tigelas. E o milagre aconteceu! Passado um mês poupara o necessário para comprar as bulas. Lavou-se, asseou-se, calçou-se, penteou-se, colocou laços de fita nos cabelos, vestiu a melhor roupita que tinha e lá foi, pé ante pé, tímida e insegura mas prazenteira e sorridente, com destino à casa do Senhor.

Na sacristia da igreja paroquial havia sido montada a tesouraria. Bateu levemente à porta e esta abriu-se. E eis senão quando à sua frente surge um monstro alto, esguio, negro, barrigudo e pançudo, que de rompante, sem ao menos lhe dar os bons dias ou dirigir uma palavra amiga e meiga, lhe saca da mãozinha trémula e fria que, tímida e hesitante, lhe estendia, as quatro moedas esbranquiçadas que ela com tanto sacrifício amealhara, devolvendo-lhe em troca duas folhas de papel, em cujo cimo e ao lado das armas papais de Sua Santidade o papa Pio XII estavam estampadas as imagens de São Pedro e São Paulo, o primeiro de chaves do Céu em riste, anunciando um reino de bondade, de amor e de verdade e o segundo segurando na mão um papiro com as suas cartas anunciadoras da paz, da justiça e da fraternidade.

Maria voltou só, triste, apreensiva e revoltada porque afinal nunca encontrou em sua casa a carne que aqueles abençoados papéis, a que chamavam bulas papais, a autorizavam a comer.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

8 comentários:

Anónimo disse...

muito era a mentira que havia acerca da religião,é por isso que as pessoas se foram afastando da igreja,Meu Deus o que faziam naquele tempo,sacrificar os pobres para alguns encherem o papo,com essas e com outras fico por aqui,obrigado senhor Carlos Fagundes e um abraço.

Anónimo disse...

Nesses anos nós todos eramos como Maria!

Anónimo disse...

Padres de faces vermelhas
Que a comer se consolam;
Sois os pastores das ovelhas
E os lobos que as degolam

autor: "Caneta" falecido
cantador terceirense
dca

Anónimo disse...

Eu fui criado na relegião catolica mas actualmente não sou seguidor e quero distancia de homens com saias, posso dizer que a igreja catolica é ipocrita, egoista e só pensa em dinheiro, é uma mafia organizada. E de fugir de homens de saias, estes não são gays são pedofilos!

Anónimo disse...

Uma coisa que afugenta muitas pessoas das igrejas é o caso dos sacos a meio da missa,é quase obrigação pagar para assistir á missa ou então não deita nada mas fica a ser senssurado,mas não acaba o caso dos sacos...venha a nós o vosso reino.

Anónimo disse...

De facto, a ignoância está sempre presente nas mais diversas ocasiões da vida do Hoeme, e manifesta-se peculiarmente quando se querem simplesmente "atirar bujardas" para o que nos convêm. Os padres e a igreja sempre foram o guardanapo onde alguns menbros da nossa sociedade sempre apreciaram limpar a boca. Ao contrário do que afirma o anónimo do dia 10 de Agosto, 09h24, a igreja não é formada exclusiavente por gays e pedófilos e outras atrocidades que saem da sua boca asquerosa. Fique sabendo que a Igreja, á semelhança das restantes instituições é formada por homens, santos e pecadores, pelo que está naturalmente sujeita a situações relacionadas com esta ambivalência. A questão da sua regeição á Igreja não é por essa razão, mas por "macaquinhos" que lá no fundo se encontram na sua cabeça mas que quer recaqlcar e arranjar desculpas que lhe parecem mais conformes à socieadade laxista em que me parece que vossa Exª se enquadra, A par do pecado, a Igreja, graças a Deus (sim, porque a Igreja não depende somente do governo humano), têm tido numerosos exemplos luminosos de pessosas que são reconhecidas pelas suas virtudes por católicos e não só. Quanto à questão dos "sacos", julgo que se refere á colecta, caro amigo, e tal situação não é obrigatória para ninguém. A missa não funciona num sistema de "máquina de tabaco". É de todos e para todos. Reflicta um pouco e verá que não está assim tanto coberto de razão.
A ignorância é filha das trevas...oxalá vos aproximeis cada vez mais da Luz. Para que saibais não óu padre nem nada do género, não ocupo cargos na hierarquia religiosa. sou um cidadão atento que, a bem da verdade e da sanidade mental que alguns parecem não manifestar, deseja repor os factos na sua devida verdade. A igreja não é um clube de perfeito e, embora nela haja lugar para todos...não há lugar para tudo. Cumprimentos e uma boa noite.

Anónimo disse...

Já agora aproveito para parabenizar o Sr Carlos Fagundes pelo sua bonita crónica, costumo acompanhá-las neste blog e gostosamente as leio. Boa noite e um abraço!

Anónimo disse...

em primeiro lugar, fantástico artigo,crónica ou como lhe queiram chamar, como tem sempre sido, sigo e seguirei atentamente o que nos continuar a presentear.
Quanto á Igreja quando lá vou não o faço para falar ou ouvir a palavra dos padres, mas para falar com Deus, por isso não me sinto em dívida para com os homens, nem para com quem se preocupa se deixo moedinhas ou não, experimentem fazer o mesmo.
A vergonha, desde o tempo das cruzadas e inquisições nunca foi da igreja, mas dos impolutos que se denominam seus servidores, e falam em seu nome como aliás em tantos outros campos, politica incluida.