quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

«Brumas e Escarpas» #33

Noite de Natal (parte 2)

Era nisto que cismava quando transpusemos o tapa vento. Entrámos no templo semi-escuro. Apenas a lâmpada do Santíssimo e, no altar-mor, algumas velas acesas. O templo estava repleto de vultos negros, de tossidelas, de rouquidões, de arrastar de cadeiras, de bichanar de orações e de cheiro a velas a arder. De repente, o sacristão, de opa vermelha, saindo apressadamente da sacristia tocou, veementemente, uma enorme campainha. Toda a gente se levantou e fez-se um enorme silêncio. O pároco emergiu, de seguida, todo de branco, envergando, na cabeça, o barrete negro das três quinas, enquanto segurava na mão o cálice devidamente coberto com um véu esbranquiçado. Fazendo uma enorme genuflexão diante do altar-mor, tirou o barrete, preparou o altar do sacrifício, genuflectiu frente ao sacrário e bichanou, silenciosamente, as primeiras orações, em latim, às quais, apenas, o sacristão respondia, sem se perceber nada ou coisa nenhuma.

O povo, de joelhos e contrito, batia com a mão direita no peito e inclinava, religiosamente, a cabeça... Pouco depois, o padre aproximou-se do centro do altar, ergueu os braços e entoou: - “Glo-ó-ó-óó-ria in excelsis-sis De-e-e-o”. O sacristão começou a badalar prolongadamente com enorme intensidade duas enormes campainhas, enquanto os sinos repicavam e a igreja se enchia de luz e de cor.

Passados estes momentos de êxtase, comemorativos do nascimento do Menino Jesus, a missa continuou, entre preces, louvores e orações. O povo levantava-se, sentava-se, ajoelhava e tornava a sentar-se, consoante as indicações da campainha do sacristão.

No fim, o celebrante, envergando a capa de asperges, dirigiu-se para o altar da Senhora do Rosário. Era lá, na parte mais baixa, numa gruta simulada, que estava o Menino, com a Virgem, São José, a vaca e o burro. Eram imagens enormes, comparadas com as do meu presépio.

O padre recebeu o turíbulo fumegante, deitou-lhe mais incenso, extraído da naveta com uma pequena colher e, balouçando-o diante das figuras do presépio, enchia a igreja de fumo, de odor e de louvor. Depois, tomou o Menino nas mãos, beijou-O e colocou-se no meio do cruzeiro, enquanto o povo formava uma enorme fila para também O beijar. Eu não fui excepção. Também me incorporei, numa marcha lenta...

Ao aproximar-se a minha vez, verifiquei que o sacristão segurava uma cesta, na qual, à medida que beijavam o Menino, a maioria dos fiéis deitava uma moeda. De repente levei a mão a bolso. Lá estavam os vinte centavos que minha irmã me dera, para comprar um chocolate no dia seguinte. Apenas naquele dia e no da festa da Senhora da Saúde gozava privilégio semelhante...

Sobre mim recaía a certeza de que, este ano, o Menino Jesus não nos traria nada. Todos confirmavam: - “A quem está de luto pela mãe, o Menino Jesus não traz presentes.” Eu, porém, achava esta razão tão indigna do Menino Jesus! Que culpa tinha eu de estar de luto'! Já não bastava ter ficado sem mãe?! E agora ficar sem prenda?! De repente, sem saber porquê, decidi negociar com o Menino. Preferia ficar sem a moeda, não comer o chocolate no dia de Natal, mas sentir a alegria de chegar a casa e ter uma prenda junto do presépio...

Hesitei... Levei a mão ao bolso, senti a moeda fria. Tirei-a, olhei-a e voltei a guardá-la no bolso e a hesitar... A minha vez de beijar o Menino, no entanto, aproximava-se... E eu não conseguia decidir... Hesitava e continuava a hesitar... Porém, ao aproximar-me do padre, os meus olhos fixaram-se nos do Menino. Enchi-me de confiança e de uma enorme coragem, beijei-lhe um dos pezinhos, ao mesmo tempo que, levando a mão ao bolso e pegando na moeda, deitava-a na cesta e fazia com Ele um contrato:

- Vou dar-te a moeda, mas tens que me dar um presente.

Terminada a cerimónia regressámos a casa. No adro as pessoas cumprimentavam-se e desejavam umas às outras, incondicionalmente: Bom Natal!... Bom Natal!...

Nós tivemos que nos esquivar à frente. Era-nos interdito, porque de luto, receber as boas festas ou dá-las aos outros... Ao passar, de novo, em frente ao Aires, meu pai, sentindo a nossa presença, juntou-se a nós... Chegámos a casa! Dirigi-me para a sala, numa correria louca, na esperança de saber se o Menino Jesus fora fiel ao nosso contrato... E não é que foi!... Lá estava, junto à gruta, um enorme embrulho. Fui eu que o abri! Eram figos passados!... Tantos figos passados!... Sentámo-nos todos à mesa da cozinha e comemo-los com pão. Que maravilha! Valera a pena hipotecar os vinte centavos, embora, nunca o tenha confessado a ninguém.

...

Só algum tempo depois, soube que o Aires vendia figos passados no botequim e que meu pai, a propósito de tratar das vacas, tinha vindo a casa durante a Missa do Galo.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

6 comentários:

Anónimo disse...

Que bom o Menino Jesus ter trazido os figinhos! Seria injusto não ter recebido um presentinho.
Que tempos esses.

Anónimo disse...

Belos tempos eram esses o menino Jesus era pobre mas feliz lá trazia um par de coécas e uma camisa de dentro e então os figuinhos que eram tão bons ainda, hoje no meu natal se não houver figos não é natal em primeiro lugar tem de haver os figos e depois venha o resto. A todos os Florentinos desejo um óptimo Natal.

Anónimo disse...

E aqueles inhames quentinhos com liguiça que se comiam a época de natal?

E umas bolachas em estrela com açucar por cima, que se comiam na noite de Natal?

E a massa sovada que a minha avó da Terceira fazia, amarelinha e com um cheiro delicioso?

E a alegria que se vivia nos escuros e frios invernos, quando a vizinhança se juntava ao serão?

E o cheiro da abóbora assada e das pevides torradas, nos dias de cozedura de pão?

Anónimo disse...

Eu penso que todos nós vivemos melhor hoje, que nossa infancia, mas todos nós temos recordações do Natal de criança.
Feliz Natal para todos!

Anónimo disse...

Obrigado por esta linda história. Eu chorei como uma Madalena.

Anónimo disse...

O Natal do outro tempo tinha-se pouco mas era lindo. lembro depois de ter o presépio feito ia mais meus irmões rezar e a pedir ao menino jesus as prendas claro que ele como era pobre pouco trazia mas daquele pouco era uma grande alegria.