«Brumas e Escarpas» #115
Brincar ao arame
O arame era uma enorme extensão de fio de aço bem esticado e preso nas extremidades a enormes vergas de madeira, umas lá no cimo da alta Rocha da Fajã e outras cá em baixo, numa espécie de espojadoiro, para tal construído. O arame formava com a rocha e o caminho paralelo à Ribeira e que dava para a Figueira, uma espécie de triângulo rectângulo do qual constituía como que uma real e verdadeira hipotenusa. Assim, fixando-se rijamente de alto abaixo da rocha em diagonal, os molhos, presos por fortes ganchos de ferro em forma de "S" ou de "C", eram nele colocados um a um e deslizavam vagarosa mas airosamente, como que dançando e balouçando-se ao longo do arame, ao sabor do vento e da gravidade, até atingirem, por vezes, enorme velocidade, e chegarem cá abaixo, donde eram imediatamente retirados.
Na Fajã Grande, ladeada a oeste por uma infinidade de rochas, existiam pelo menos mais três ou quatro arames: um na Rocha da Ponta, um na Rocha dos Paus Brancos e outro no Cabeço da Rocha, mas o principal e mais utilizado era realmente “o Arame da Ribeira”. O arame, inevitavelmente, fazia parte da vida quotidiana fajãgrandense.
Ora, a ganapada de outros tempos, sem brinquedos de plástico e sem ipads e consolas, brincava com aquilo com que via os pais trabalharem no seu dia-a-dia. Era assim com as vacas de sabugo ou de favas, com os barcos de madeira, com a máquina de desnatar leite de batata branca, com os porquinhos de batata-doce, com as cadeirinhas de junco e com tantas outras coisas. Uma delas era brincar ao arame.
Para brincar ao arame procurava-se um local ou um sítio desnivelado. O estaleiro do milho era o mais utilizado. Outras vezes um maroiço, uma parede, um pátio mais alto ou até a janela de uma casa velha. Depois arranjava-se um fio de barbante ou outro qualquer, por vezes até uma espadana desfiada e muito bem atada, sem que os nós se salientassem em demasia. Amarrava-se uma das extremidades do fio no alto e outra no chão e esticava-se bem. Os ganchos eram feitos de pedacinhos de arame que se encontrava por aqui e por ali. Quando não se tinha arame recorria-se a um garrancho de lenha de incenso ou faia, que formasse um "V" invertido. Os molhinhos eram feitos do que havia mais à mão: fochos, sabugos, ramos de árvores, por vezes até uma pequena pedra. Todos estes artefactos eram amarrados com fios de espadana, presos nos ganchinhos e uma vez pendurados no fio, começavam a deslizar por ele abaixo como desciam os molhos que os nossos pais colocam lá no alto da Rocha, através do Arame da Ribeira ou dos outros existentes na freguesia.
Uma brincadeira encantadora, esta do arame.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».
2 comentários:
Histórias lindas que foram reais.
Contava meu pai que um belo dia fora brincar, com o seu irmão mais novo, para o arame da Fajã da Figueira, que já deveria estar fraco, pois rebentou enquanto brincavam. Cheios de medo foram para casa; seria preciso contar ao pai! Meu avõ era severo...minha avó tentou suavizar a questão, fazendo uma coisa que não se faz, ou seja dizendo ao marido que eles já tinham encontrado o arame partido - mas meu avô não acreditou, e meu pai apanhou enorme tareia, por ser o mais velho dos dois irmãos!
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