domingo, 24 de abril de 2011

«Manifesto d@s 74 nascid@s depois de Abril de 1974: O inevitável é inviável»

Somos cidadãos e cidadãs nascidos depois do 25 de Abril de 1974. Crescemos com a consciência de que as conquistas democráticas e os mais básicos direitos de cidadania são filhos directos desse momento histórico. Soubemos resistir ao derrotismo cínico, mesmo quando os factos pareciam querer lutar contra nós: quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusava uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, e a concedia a torturadores da PIDE/DGS; quando um governo decidia comemorar Abril como uma «evolução», colocando o «R» no caixote de lixo da História; quando víamos figuras políticas e militares tomar a revolução do 25 de Abril como um património seu. Soubemos permanecer alinhados com a sabedoria da esperança, porque sem ela a democracia não tem alma nem futuro.

O momento crítico que o país atravessa tem vindo a ser aproveitado para promover uma erosão preocupante da herança material e simbólica construída em torno do 25 de Abril. Não o afirmamos por saudosismo bacoco ou por populismo de circunstância. Se não é de agora o ataque a algumas conquistas que fizeram de nós um país mais justo, mais livre e menos desigual, a ofensiva que se prepara – com a cobertura do Fundo Monetário Internacional e a acção diligente do «grande centro» ideológico – pode significar um retrocesso sério, inédito e porventura irreversível. Entendemos, por isso, que é altura de erguermos a nossa voz. Amanhã pode ser tarde.

O primeiro eixo dessa ofensiva ocorre no campo do trabalho. A regressão dos direitos laborais tem caminhado a par com uma crescente precarização que invade todos os planos da vida: o emprego e o rendimento são incertos, tal como incerto se torna o local onde se reside, a possibilidade de constituir família, o futuro profissional. Como o sabem todos aqueles e aquelas que experienciam esta situação, a precariedade não rima com liberdade. Esta só existe se estiverem garantidas perspectivas mínimas de segurança laboral, um rendimento adequado, habitação condigna e a possibilidade de se acederem a dispositivos culturais e educativos. O desemprego, os falsos recibos verdes, o uso continuado e abusivo de contratos a prazo e as empresas de trabalho temporário são hoje as faces deste tempo em que o trabalho sem direitos se tornou a norma. Recentes declarações de agentes políticos e económicos já mostraram que a redução dos direitos e a retracção salarial é a rota pretendida. Em sentido inverso, estamos dispostos a lutar por um novo pacto social que trave este regresso a vínculos laborais típicos do século XIX.

O segundo eixo dessa ofensiva centra-se no enfraquecimento e desmantelamento do Estado social. A saúde e a educação são as duas grandes fatias do bolo público que o apetite privado busca capturar. Infelizmente, algum caminho já foi trilhado, ainda que na penumbra. Sabemos que não há igualdade de oportunidades sem uma rede pública estruturada e acessível de saúde e educação. Estamos convencidos de que não há democracia sem igualdade de oportunidades. Preocupa-nos, por isso, o desinvestimento no SNS, a inexistência de uma rede de creches acessível, os problemas que enfrenta a escola pública e as desistências de frequência do ensino superior por motivos económicos. Num país com fortes bolsas de pobreza e com endémicas desigualdades, corroer direitos sociais constitucionalmente consagrados é perverter a nossa coluna vertebral democrática, e o caldo perfeito para o populismo xenófobo. Com isso, não podemos pactuar. No nosso ponto de vista, esta é a linha de fronteira que separa uma sociedade preocupada com o equilíbrio e a justiça e uma sociedade baseada numa diferença substantiva entre as elites e a restante população.

Por fim, o terceiro e mais inquietante eixo desta ofensiva anti-Abril assenta na imposição de uma ideia de inevitabilidade que transforma a política mais numa ratificação de escolhas já feitas do que numa disputa real em torno de projectos diferenciados. Este discurso ganhou terreno nos últimos tempos, acentuou-se bastante nas últimas semanas e tenderá a piorar com a transformação do país num protectorado do FMI. Um novo vocabulário instala-se, transformando em «credores» aqueles que lucram com a dívida, em «resgate financeiro» a imposição ainda mais acentuada de políticas de austeridade e em «consenso alargado» a vontade de ditar a priori as soluções governativas. Esta maquilhagem da língua ocupa de tal forma o terreno mediático que a própria capacidade de pensar e enunciar alternativas se encontra ofuscada.

Por isso dizemos: queremos contribuir para melhorar o país, mas recusamos ser parte de uma engrenagem de destruição de direitos e de erosão da esperança. Se nos roubarem Abril, dar-vos-emos Maio!


Algumas/uns 24 d@s 74 que subscrevem este «Manifesto d@s 74 por [Abril de 19]74»: Bruno Sena Martins – antropólogo; Cristina Andrade – psicóloga; Gui Castro Felga – arquitecta; Helena Romão – música, musicóloga; João Labrincha – desempregado; Joana Manuel – actriz; João Pacheco – jornalista; João Ricardo Vasconcelos – politólogo; João Rodrigues – economista; José Luís Peixoto – escritor; José Neves – historiador, professor universitário; Mariana Avelãs – tradutora; Mariana Canotilho – assistente universitária; Marta Rebelo – jurista, assistente universitária; Miguel Cardina – historiador; Nuno Duarte (Jel) – artista; Nuno Teles – economista; Paula Gil – estagiária; Ricardo Araújo Pereira – humorista; Ricardo Noronha – historiador; Ricardo Sequeiros Coelho – bolseiro de investigação; Tiago Gillot – engenheiro agrónomo, encarregado de armazém; Tiago Mota Saraiva – arquitecto; Tiago Ribeiro – sociólogo.

3 comentários:

25 de Abril Sempre. É preciso uma nova Revolução. Agora, a sério!!!!! disse...

«Acredito que as instituições bancárias são mais perigosas para as nossas Liberdades do que os levantamentos do Exército».

Thomas Jefferson
1802 (EUA)

Anónimo disse...

Não valeu a pena eu estar no 25 de abril para agora haver tantos malandros e falta de respeito pelas pessoas.

Anónimo disse...

Boa tarde
Venho ver se o blog está vivo. Desde o dia 1 de Maio que não publica notícias e mesmo os comentários às últimas publicações pararam.Sei que a administração do blog é um trabalho voluntário e por isso respeito a eventual falta de disponibilidade.Mas acho falta.
Gostava de ter visto maior debate àcerca desta notícia do manifesto dos 74.
Respeito a posição defendida e aprecio uma sociedade crítica,mas há na mensagem chavões que temos vindo a ouvir de quem vive noutra dimensão.
Elites todas as sociedades as tiveram em todos os tempos,e todos os modelos aspiram a te-las.O contrário é utopia.As inevitabilidades só se podem evitar,por antecipação.Ninguém,com poder de decisão se antecipou a elas.Então é o que se vê. É mesmo inevitável.Se não vier o plim-plim dos que o têm,em Junho não temos com que pagar as prestações da dívida que contraimos,comprar o trigo que não pruduzimos etc.
O Estado social é optimo,todos o queremos. Porém, quem o sustenta é a economia, a produção,coisas em que andamos muito por baixo.Para haver produção tem que haver emprego e para ambos é preciso investimento.Quem o pode fazer ? Quem tem a tal coisa "odiosa" que se chama dinheiro.Quem quer investir num país que tem a justiça que nós temos e um povo que,com as honrosas excepções,quer emprego (quando não tiver o Subsídio de Desemprego ou Rendimento Social de Inserção)mas não quer trabalho?
Que venha Maio e todos os Maios e a esperança,mas com uma mentalidade ou pouco diferente da que temos tido,com a convicção de que tudo só vem do trabalho,não cai do espaço.
O tempo é de reflexção e de debate,é útil que ele se faça.Quem tiver contributod tem a obrigação de os oferecer de forme séris e clara.
Cumprimentos.