terça-feira, 31 de maio de 2011

«Brumas e Escarpas» #22

A caneta de Mister Robert

No início da década de 50, vindo da Califórnia, chegou à Fajã Grande um homem já de idade avançada, com a intenção de não mais regressar aos Estados Unidos. Mister Robert, assim se chamava o velhote, fixou-se definitivamente na Assomada, em casa de uns sobrinhos. Saíra das Flores ainda criança e nunca mais voltara à Fajã, desconhecendo por completo pessoas, usos e costumes. Mas, como era muito curioso e desconfiado, desde de logo manifestou uma enorme apetência para, como se dizia, “meter o nariz em tudo”.

Alguns dias após a sua chegada, ao passar em frente à Igreja paroquial, decidiu entrar, com a denodada e exclusiva intenção de ver e conhecer o templo. Ao transpor a porta do guarda-vento, reparou, para espanto seu, que por cima da pia da água benta havia uma minúscula prateleira onde estavam colocados, muito bem arrumadinhos, uma série de pequenos objectos: pentes, ganchos de cabelo, terços, medalhinhas e até um canivete com o ferro enferrujado. Admirado com aquela panóplia de objectos e na tentativa de descortinar a razão por que estavam ali, dirigiu-se à Maria Eduarda, que, como habitualmente, permanecia horas a fio no templo, em oração. Ela, colocando, momentaneamente, os interesses de tão ilustre e invulgar visitante acima dos divinos e assumindo a sua qualidade de divulgadora mor dos usos, dos costumes e de tudo o mais que se passava na freguesia, interrompeu de imediato as suas rezas e veio muito prazenteira explicar: Que aquilo eram objectos perdidos por alguém e que as pessoas ao encontrá-los, ali os colocavam para que o verdadeiro dono, ao entrar na igreja e ao meter a mão na pia da água benta, visse o objecto que perdera e assim o recuperasse.

Mr Robert achou aquilo “very interesting”. Era na realidade uma magnífica estratégia, nunca imaginada pelos americanos, para, com a colaboração de Deus, “devolver a César o que é de César”. Nem na Califórnia e possivelmente em nenhum outro estado americano se havia algum dia projectado ou posto em prática tão simples e inovadora forma de restituir a cada um o que, por direito próprio, lhe pertencia.

Encantado com aquela originalidade que engrandecia a admiração que começava a ter pela simplicidade e honestidade das gentes das ilhas, vai disto e, para testar o sistema, tira do bolso interior do seu casaco uma caneta de tinta permanente, novinha em folha, colocando-a na dita prateleira, no meio dos outros objectos.

Saiu do templo e continuou o seu périplo até ao Porto. Ao regressar a casa, algum tempo depois, voltou a entrar na Igreja, não para meter a mão na água lustral mas para reaver o que era seu. Qual não foi o seu espanto ao verificar que lá ainda estavam alguns objectos, mas outros, entre os quais a sua caneta, tinham desaparecido.

Admiradíssimo e furibundo foi ter com a Maria Eduarda, recriminando-a por o ter enganado. É que tinha ficado sem o que era seu, sem a sua caneta, nova e caríssima, que estimava tanto e que usava apenas para assinar os cheques.

A Maria Eduarda, apesar de beata, não era parva e explicou-lhe que afinal não era bem assim o que lhe tinha dito e esclareceu:

- Lá, nunca colocámos o que é nosso, mas sim os objectos que encontrámos e que não nos pertencem, pois, segundo a lei de Deus, “não devemos reter ou danificar os bens do próximo”. Colocar lá o que nos pertence é desafiar a justiça divina. Devemos lá colocar somente os objectos alheios. Ora Mr Robert colocou lá o que era seu… possivelmente Deus o terá castigado. – E concluiu com veemência: - Com a justiça divina não se brinca, Mr Robert, com a justiça divina não se brinca.

Mister Robert saiu exasperado, desferindo impropérios sucessivos e prolongados, em americano, à pia da água benta, à Maria Eduarda, à honestidade da gente das ilhas, à Igreja, ao clero em geral e até à justiça divina.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

4 comentários:

Anónimo disse...

Gostei.

Anónimo disse...

Estória muito bem contada e em Português corrente e muito fluente.

Anónimo disse...

Quantas histórias como esta - autênticas lições de vida para os nossos jovens - há pelas freguesias da nossa ilha?

Não resisto a contar uma da Terceira.
O Charrua e a Terlew (ou Turlu) eram dois conhecidos improvisadores, que percorriam pelas festas as freguesias da ilha debitando versos ao desafio.
Eram famosos os seus despiques.
Numa das suas acaloradas contendas
Terlew cantou:

Um pão é sempre um pão
Um forno é sempre um forno
Um cão é sempre um cão
Um corno é sempre um corno

Ao que Charrua respondeu:

Mas um corno bem vestido
Tem outra apresentação
Olha ali pró teu marido
E vê se é verdade ou não.

Passado pouco tempo, Terlew enviuvou e, para espanto dos Terceirenses, casou com Charrua.

Anónimo disse...

E lá se foi a caneta do mr.Robert,o homem estava a textar a seriedade do pessoal da Freguesia,acredito que nunca mais se meteu noutra.