«Brumas e Escarpas» #83
Virgem
Imaculadamente virgem, Aurora saiu de casa dos pais com destino à igreja. No altar esperava-a o padre Silvestre, o Chico do Ferreiro e uma enorme angústia.
Chegara a hora de se aviar a moçoila. Era a mais velha e a casa do Rebimbas rebentava pelas costuras: na loja, entre cestos de batatas e sacos de inhames, três barras para os rapazes e a sala a abarrotar com as pequenas. De resto, apenas um minúsculo e esconso quarto de cama destinado ao casal e a cozinha, esta sim, apesar de vetusta e desordenada, muito ampla e, exageradamente, espaçosa. Filhos e filhas, a roçar a dúzia, atarracavam-se em disputas e em desejos incontidos, atropelavam-se nos dias invernosos e, à noite, sobretudo na hora de lavar os pés, ameaçavam-se em murmúrios desgovernados e em ameaças hostis. Um sufoco!
Primogénita, agora com vinte e dois anos, Aurora era a candidata natural ao primeiro desbasto e, além disso, desde há muito que o Chico do Ferreiro lhe catrapiscava o olho. Ela, nada. Aquela pasmaceira, indiferente e fria, habituada ao trabalho, educada entre rezas e jaculatórias, alheia aos mais simples prazeres da vida. Mas isso pouco importava. Virgem de corpo e ingénua de alma, nem às da sua idade compartilhara sentimentos ou, sobre elas, despejava desvelos ou paparicava curiosidades. Na sua supérflua ignorância e imaculada vivência, entendia que casar era um destino normal e comum, mas sem significado e importância. Era como ir lavar um cesto de roupa à ribeira. Casar era, apenas, partilhar a casa com um homem, cozinhar, lavar, arrumar, ter filhos e ajudar nos campos. Mas, pior do que isso. Para ela, casar era um martírio, um sacrifício, uma ignomínia a roçar a indignidade, porquanto à noite, embora com o corpo bem tapado com um desafogado “naitigão”, era obrigada a partilhar a cama com um homem que lhe era totalmente estranho e que, de um momento para o outro, se transformava em marido.
Simples a cerimónia, pobre a boda. Os tempos eram de miséria e a vida cerceada por limitações. E à noitinha, depois de desertarem os convidados, lá partiu Aurora com o Chico, a caminho da Via d’ Água onde lhe haviam montado um pequeno, pobre e humilde casebre.
Aurora acendeu o lume, aqueceu água numa chaleira a abarrotar de tisna, lavaram-se à vez, na cozinha, numa selha de madeira, e deitaram-se, na mesma cama, porque não havia mais nenhuma. O Chico ainda tentou uma, duas e três vezes, procurar-lhe o corpo arquejante, envergonhado e temeroso, acariciando-lhe as mãos e os braços nus. De seguida, galvanizado pela suavidade daquela pele, acicatado pela doçura daquele corpo, incendiado por desejos lascivos, tentou afagar-lhe os seios. Aurora, porém, de imediato se esquivou, lívida, petrificante e apavorada, expelindo uma decidida e inequívoca rejeição. Nem por sombras havia de deixar-se ser tocada por um homem. O Chico insistiu. Mas as respostas vinham sempre tão abruptas, tão inveteradas, transformando-se em recusas decididas, radicais e absolutas. E a noite a transformar-se numa aflição para ela e um agastamento para ele. Com o intuito de lhe afastar as tentações, Aurora pegou no terço que a mãe lhe dera como prenda de casamento e começou a dedilhá-lo com meticulosa fogosidade e acentuado fervor. O Chico, embora convulsivo e revoltado, aquietou-se. Não queria molestá-la, nem muito menos fazê-la sofrer, embora sonhasse, desde há muito, com aquela noite terna, maviosa, envolvente e sublime, durante a qual se entregaria, total e plenamente, à mulher que escolhera como companheira. Durante o namoro, conciso e intervalado, nunca lhe arrancara sequer um abraço, nem, muito menos, um beijo. Herdara as esquisitices da mãe, sempre a ameaçar, sempre a perseguir, sempre a meter medo com tolices e despautérios que haviam provocado aquela cegueira com que ela, mesmo agora, depois de casada, o afastava de carinhos e enlevos. Os fantasmas e as palermices que lhe haviam arrolhado na cabeça é que a impediam de se entregar na sublimidade e na doçura daquela noite. Se quisesse podia força-la, obrigá-la... Talvez ela, ao sentir-se forçada, cedesse e acabasse por descobrir o prazer da entrega e da paixão e, assim, apagasse as cicatrizes dos medos, das interdições, das ameaças, dos castigos, do inferno. Voltou-se num impulso instintivo, quase animalesco, açulado por uma natureza abrupta e cósmica, mas pura e ingénua. Ela, acicatada pelo sono, já abdicara do terço e deslizava, agora, sobre o travesseiro, cuidando que ele se aquietara do seu ousado atrevimento. Mas não. Ele, apenas por momentos, descera ao abismo do silêncio escuro. Mantinha-se vigilante, resistente, disposto a lançar-se numa investida que protagonizasse todo o seu vigor. Era tão grande a ânsia de desfazer aquele afastamento, anular aquela recusa, ultrapassar aquela oposição. A luz de petróleo há muito que se apagara e o quarto permanecia numa escuridão mórbida e silenciosa. O Chico encostou, parcialmente, o seu corpo ao dela que permanecia apática, indiferente, despegada de desejos e prazeres. Fortes pulsões pediam-lhe uma concentração forte dos sentidos e uma rapidez de movimentos que ela, antecipadamente, não percebesse, voltando, assim, a rejeitá-lo. Ardendo em desejos, o Chico esvoaçava aspirações, perante um corpo aparentemente inerte e despido de vontade, perdido na escuridão do quarto. Uma instintiva pujança diluiu-lhe o corpo, consubstanciando-se numa posse rápida, eficiente e certeira, numa comunhão não partilhada pela amante gélida, fria, estática, incapaz de identificar uma nesga que fosse do píncaro do prazer. E num ápice o Chico explodiu...
Aurora levantou-se, confusa, estonteante e indignada. Acabava de pecar gravemente, entrelaçando-se nas mais hediondas forças do mal, entregando-se a Satanás. Por isso, nenhuma razão tinha para continuar ali, nem fora para isso que viera. Não havia de colocar-se, todos os dias, ao lado daquele homem, com lágrimas, dor, sofrimento e desalento. Nunca mais havia de consentir que voltassem a pecar.
O Chico, agastado de sublimidade, acariciado num cansaço doce e extasiante, aquietara-se da agitação subsequente ao enlevo, adormecendo. Aurora levantou-se, juntou as suas parcas roupas e, enrolando-as num xaile, fez uma trouxa.
Madrugada, ainda noite escura, a mãe, após toda uma noite alvoraçada, ouviu um leve arranhar de mãos na porta da cozinha. Veio à janela e, em voz baixa, indagou:
- Quem está aí?
De fora uma voz trémula e assustada, respondeu:
- Sou eu, a Aurora.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».
1 comentário:
E o que é que acontecia nestes casos?
Os pais, em conluio com o padre, mandavam-na para o marido.
Tudo era pecado e tudo deixava de ser.
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