domingo, 28 de maio de 2017

«Brumas e Escarpas» #125

A baleação da criançada

As crianças, geralmente, imitavam nas suas brincadeiras as atividades a que se dedicavam os adultos. Era assim com a pecuária, com a agricultura e também com a baleação.

A brincadeira da baleação iniciava-se com a construção dos botes e da lancha feitos de cana mas que eram em tudo semelhantes aos dos adultos, aos da verdadeira baleação. As canas proliferavam por ali e eram apanhadas no Outeiro, junto à Cruz ou na ladeira do Fernando. Num ápice a frota estava pronta. Duas canas amarradas em ambas as extremidades com fios de espadana, três ou quatro canas mais pequenas mas com tamanhos diferentes e cortadas em bico nas extremidades eram encaixadas nas duas canas iniciais, a maior ao centro e as outras a decrescerem para a ponta e para a ré, dando-lhes forma de um bote. Selecionada a companha, o mestre aplicava na ré uma cana a fazer de esparrel enquanto o trancador desfiava uma espadana e, amarrando os fios uns nos outros, fazia um cordão ao qual amarrava o arpão, ou seja, uma outra cana de ponta bem afiada e presa, na parte posterior, à proa do bote. Os restantes encadeavam canas de um e outro lado do bote a simular os remos. A lancha, a que era dado o nome de “Leta” ou “Maria Palmira” ou “Santa Teresinha” era em tudo semelhante aos botes mas sem esparrel. Tinha uma lança em vez do arpão e era quadrada à ré, tendo como tripulação, se a miudagem fosse pouca, apenas um tripulante que fazia simultaneamente de mestre, maquinista e proeiro. Os que não tinham lugar nas embarcações, geralmente os mais pequenos ou os menos creditados na arte estavam condenados a fazer de baleias. Destes havia um que no início desempenhava o papel de vigia. Como ficava sem fazer nada, logo após o atirar do foguete transformava-se em baleia. O mar era a Rua Direita, junto ao chafariz de duas bicas, e o porto, onde a frota estava parada e donde partia logo que o foguete rebentasse, era o pátio da Casa de Espírito Santo de Cima.

Por sua vez as baleias percorriam a rua de cócoras, depois de encherem a boca com água nas bicas do chafariz. Logo que a primeira baleia se pusesse em pé, isto é, viesse à tona de água e bufasse o jato de água, o vigia encavalitado em cima do chafariz atirava o foguete, lançando para o ar uma pequena cana ou uma vara ou, por vezes, até um jacinto arrancado num quintal qualquer ali perto, acompanhado de um enorme e estrondoso “fsst pum, prá, prá, prá” se fosse cardume ou um simples “fsst pum” se fosse uma só baleia. De imediato toda a companha corria para os seus botes a gritar “Baleia à vista! Baleia à vista!”. Entravam nos botes, ocupavam os seus postos e lá seguiam atrelados à lancha ou a remar sozinhos para o alto mar, ou seja para o sítio onde estavam as baleias. Estas andando de cócoras, a simbolizar que estavam debaixo de água, com a boca cheia de água lá se iam levantando e bufando de vez em quando mas deviam fazê-lo com tal agilidade, rapidez e performance que dificultasse ao máximo a ação do trancador, evitando que este lhes acertasse. É que o trancador só podia atirar o arpão às baleias que estivessem em pé e a bufar. As regras no entanto exigiam que estas o fizessem frequentemente e corressem para o chafariz, voltando a encher a boca de água, logo que a esvaziassem.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

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