sábado, 8 de julho de 2017

«Brumas e Escarpas» #125

O naufrágio do Papadiamandis

No dia 22 de Dezembro de 1965 deu-se mais um memorável naufrágio nos mares da Fajã Grande. O navio, um cargueiro liberiano de nome Papadiamandis, com um calado de 14.300 toneladas, encalhou na Ponta da Coalheira, entre a Retorta e o Caneiro das Furnas. O cargueiro viajava de New Orleans para Hamburgo, com um carregamento de milho, trigo e feijão. Viajavam a bordo trinta e um tripulantes, tendo todos sido salvos e conduzidos para Santa Cruz onde se albergaram, com exceção de três que foram recolhidos por um navio que, navegando ao largo, ao pedido de auxílio se aproximou da embarcação a fim de prestar ajuda aos naufragos.

Este foi, na verdade, o último grande naufrágio dos muitos que, sobretudo no século XIX, ocorreram por toda a ilha das Flores, com particular incidência na sua costa oeste, incluindo os extensos baixios da Fajã Grande, uma espécie de fronteira entre a Europa e a América, na qual, naturalmente, se inclui o ilhéu do Monchique – o torrão mais ocidental da Europa e a própria - e a Baixa Rasa, pese embora a maioria das embarcações naufragadas, a exemplo do Papadiamandis e da Bidart, se encafuassem nos próprios baixios e laredos que separam a terra do mar.

Assim como noutros casos, o naufrágio do Papadiamandis atirou para terra uma quantidade enorme de utensílios do próprio navio e de grande parte da própria carga, o que fez com que muitas pessoas demandassem a costa, em primeiro lugar para prestar ajuda e auxiliar os náufragos mas, posteriormente, para recolherem restos de carga e peças ou utensílios do navio. No caso do Papadiamandis a recolha, porém foi muito limitada dada a acção permanente e contínua da Guarda Fiscal que não deixava ninguém aproximar-se do navio nem da zona circundante do baixio.

Na verdade quase sempre os naufrágios constituíram, para a população da Fajã Grande e de outras localidades, uma oportunidade suplementar de rendimento, desde que aos salvados conseguissem chegar primeiro que as autoridades aduaneiras. Estranho mas memorável para as gentes da Fajã Grande terá sido o Natal de 1869! É que nesse 25 de Dezembro deu ali à costa, carregada de açúcar mascavado, um sabor de muitos ainda desconhecido, e de aguardente, a barca francesa Republique, que o povo logo invadiu, levando quanto pôde, numa abundância tal que, nas semanas seguintes, até com açúcar se temperaram caldos de couves. Foram, todavia, os grandes carregamentos de madeira de pinho resinoso que, de forma mais visível, ajudaram a perpetuar a memória, um pouco por toda a ilha, de algumas dessas já longínquas tragédias marítimas. Consta que a Igreja da Ponta, a exemplo de outras da ilha, foi construída com madeiras de naufrágios.

Do espólio do Papadiamandis que transportava mais de 14 mil toneladas de milho, pouco ou nada recolheu o povo da Fajã Grande, devido sobretudo ao cerco eficiente e à vigilância permanente da Guarda Fiscal. Conta-se até que uma criança de tenra idade ao ser encontrada por um elemento daquela força policial com uma lata de milho, mais por ver ali um brinquedo estranho porque de milho cozido não necessitava, foi violentamente agredido pelo agente da autoridade e forçado a lhe entregar a respetiva lata.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

2 comentários:

Anónimo disse...

Lembro-me muito bem deste caso, na altura tinha 14 anos, foi um caso muito falado em toda a Ilha, as pessoas é que davam informações não havia radios e os poucos que havia era ligados à luz.

Anónimo disse...

Esta coisa de sacar tudo após um naufrágio fica-nos pouco bem. Mas era mesmo assim. Diz que na Terceira quando caíam aviões americanos até dedos cortavam para tirarem os anéis!