«Brumas e Escarpas» #37
O desastre do Vale Fundo
Durante a construção da estrada que liga o porto da Fajã à Ribeira Grande, nos anos 50 do século passado, foi necessário partir muito calhau e rebentar muita rocha. O traçado da estrada, ao contrário dos caminhos antigos que nos seus trajectos procuravam os locais mais fáceis de abrir, era quase rectilíneo, desviado dos antigos caminhos, atravessando terras e serrados, cortando montes e enchendo vales, rompendo por todo e qualquer sítio, sem dó nem piedade. Ao serem escavados os montes, no entanto, por vezes, surgiam enormes, pétreos e pesados calhaus ou indomáveis e tremendas pedreiras que só poderiam ser retiradas dali, a fim de desobstruírem o traçado da estrada, depois de partidas e desfeitas em mil pedaços. Os empreiteiros, vindos da Terceira, sabiam-no bem e, por isso, vieram prevenidos e preparados com pólvora, dinamite e os respectivos meios de perfuração de tão inexauríveis rochedos em que a ilha das Flores e, muito especialmente, a zona das fajãs era pródiga.
O processo de remoção de um calhau ou grande pedregulho era moroso, árduo e bastante complicado. Era necessário fazer um furo na respectiva pedra. Para tal eram necessários três homens: um a segurar a cavilha de ferro que muito lentamente ia fazendo um furo no calhau enquanto dois batiam, alternadamente, com martelos de ferro na cavilha. De vez em quando tinham que parar para limpar o pó que se acumulava no orifício que iam perfurando. Só depois de pronto [o furo] era metida uma vela de dinamite no buraco e a ela se ligava um “fiusgo” bastante comprido. De seguida gritava-se bem alto “fooooooooogo” para que, não apenas os trabalhadores, mas também quem por ali passasse ou quem andasse a trabalhar por perto, fugisse e se colocasse em sítios protegidos. Só então se acendia lume no fio que ia ardendo lentamente até chegar à vela, provocando uma estrondosa explosão e o consequente rebentamento da pedra, que simultaneamente fazia explodir pelo arredores uma série de lascas cortantes como navalhas e uma enorme quantidade de pequenos pedregulhos tão mortíferos como balas. Mas os empreiteiros não terão trazido as velas de dinamite necessárias para tão grande quantidade de rochedos e, por isso, em alternativa ao dinamite, usavam, sobretudo na parte final da empreitada, uma mistura de pólvora e outros explosivos, o que se tornava ainda mais perigoso.
Ora aconteceu que numa destas operações, lá para os lados do Vale Fundo, já quase junto à Ribeira do Ferreiro, ao preparar uma pedra com pólvora, esta terá sido atingida inadvertidamente por uma faísca que provocou uma explosão e um rebentamento, o qual apanhou alguns trabalhadores de surpresa. Foram atingidos gravemente três homens: o Corvelo, o Francisco Facha e o Roberto de José Padre. O Corvelo teve morte imediata, o Francisco Facha ficou gravemente ferido, sendo evacuado para Lisboa tendo perdido um dos olhos, enquanto o Roberto, o ferido com menor gravidade, foi evacuado para o Faial.
A notícia do acidente foi recebida no povoado com grande alvoroço e preocupação. As informações eram confusas e contraditórias e muita gente acorreu ao lugar para se certificar se algum familiar tinha sido atingido.
Apesar de grave e causar uma morte, as consequências deste acidente poderiam ter sido bem maiores. No entanto ele constituiu um marco bem amargo e doloroso no historial da construção daquele pequeno troço de estrada que havia de ligar definitivamente a Fajã Grande a Santa Cruz, às Lajes e ao resto da ilha.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».
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