sábado, 20 de setembro de 2014

«Brumas e Escarpas» #79

A Festa da Cruz

No início da década de 1950 e provavelmente nas anteriores, uma das mais emblemáticas e interessantes festas realizadas na Fajã Grande era a Festa da Cruz. Tinha lugar precisamente na noite do dia 14 de Setembro, dia em que a Igreja Católica liturgicamente celebra e comemora a Exaltação da Santa Cruz ou seja o madeiro em que Cristo foi crucificado.

A freguesia da Fajã Grande na parte mais a sul fica encastoada entre duas colinas ou pequenos montes, designados vulgarmente por outeiros. Do lado do mar tem lugar o Pico, onde se integram o Pico do Areal e o Pico da Vigia, e do lado este o Outeiro propriamente dito, este prolongando-se na direcção sul-norte desde a Cabaceira até à Praça, como que a despejar-se sobre o povoado, separando a Assomada da Fontinha. É precisamente nesta divisória das duas ruas, na parte mais alta do Outeiro que se ergue uma enorme cruz branca, altíssima e robusta, junto à qual, nas terças e sextas-feiras quaresmais, um grupo de homens, quer chovesse quer ventasse, ajoelhava entoando cânticos e orações diversas e prolongadas. As suas vozes, ecoando nas encostas dos montes, ressoavam e repercutiam-se sobre os velhos telhados dos casebres. Simultaneamente em todos os lares, famílias inteiras ajoelhavam também e, em convicta e comunitária oração, uniam-se às preces dos cantores, suplicando perdão para os delituosos e pecadores e beneficência para os infelizes e sofredores. Por sua vez do Outeiro, sobranceiro à freguesia, a que se tinha acesso por uma íngreme e sinuosa vereda, desfrutava-se duma vista fantástica. Ao perto, os telhados e frontispícios do casario, mais ao longe os campos verdes e amarelados de couves e milho e, além, separado pela mancha negra do baixio, o oceano azulado e infinito, contrastando com a tímida pequenez da ilha.

A Cruz do Outeiro era uma espécie de ex-líbris da Fajã Grande e, para além das cantorias da Quaresma, em Setembro era homenageada com uma enorme festa, celebrada à noite. Saída da igreja paroquial organizava-se uma espécie de procissão de velas. As pessoas em grande número transportavam uma vela acesa, protegida com uma folha de papel colorido, em forma de funil. Aos que saíam da igreja, ao longo do percurso juntavam-se muitos outros fiéis, sobretudo os mais atrasados e os que moravam entre a igreja e o início da vereda.

Ao iniciar-se a subida, o espectáculo excedia-se em beleza, em cores, em luzes e em sons. Empunhando as velas, os fiéis entoavam cânticos, ao mesmo tempo que as luzes se iam alongando na subida, formando um cordão luminoso e colorido, uma espécie de colar que se ia prolongando pela encosta até se enroscar ao redor da Cruz. Visto de longe, o espectáculo era magnífico. O pároco, envergando uma estola vermelha, que a igreja da Fajã não tinha capa de asperges dessa cor, transportava o Santo Lenho. Ao chegar junto da Cruz, enquanto os fiéis mantendo as velas acesas rodeavam a Cruz, o pároco rezava algumas orações, cantava salmos e hinos de louvor à Cruz em cantochão e dava a benção com o Santo Lenho aos presentes e a toda a freguesia.

Descendo o Outeiro e regressando à igreja, entre cânticos e luzes, era celebrada a missa da Exaltação da Santa Cruz.

A Festa da Cruz, um momento religioso, pleno de fé e simbolismo, estranhamente ou talvez não, perdeu-se no tempo e até na memória.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

Sem comentários: