A promessa
A casa do Cambado explodiu de alegria e contentamento quando, através duma carta vinda da América, recebeu a notícia de que o mano Augusto, no próximo Verão, vinha de visita à Fajã, com a intenção de pagar uma promessa feita há muitos anos: um jantar de pão e carne, a toda a freguesia, em louvor do Senhor Espírito Santo. Apalavrasse o mano, quanto antes, duas reses ou que ele próprio as criasse que depois, quando chegasse, lhas havia de pagar. Queria-as de boa raça, bem gordas e anafadas. E mais não dizia!
Ufanou-se o Cambado, regozijou-se a mulher e exultaram de contentamento os filhos. Mas quem mais se inebriou de regozijo foi a filha mais velha, a Verónica que a partir desse dia não deixou de sonhar com a promessa do tio Augusto. É verdade que mal se lembrava dele, que a carta ocultava todos os outros pormenores, relativos quer à festa, quer à estadia deles e a tudo o mais. Mas, caramba!, ele não tinha filhas, apenas dois rapazes que, ao que se sabia ainda não namoravam e, do lado do pai, o parente mais chegado, não havia nenhuma outra rapariga com idade apropriada para levar a coroa no cortejo. Havia de ser ela. Olaré, se havia!
Todos os anos, pelas festas do Espírito Santo, eram as meninas mais ricas da freguesia, as filhas dos senhores mais importantes, que levavam a coroa, durante os cortejos. Ela desfazia-se em tristezas e acabrunhava-se em mágoas. Tantas vezes sonhara que um dia a haviam de a convidar. Mas nada! Chegava-se ao dia da festa e lá ia a mesma do ano anterior ou uma outra das meninas mais finas e chiques da freguesia, trajando vestido de tule branco, em tudo semelhante ao das noivas, capa de veludo avermelhado, diademas de prata e brilhantes na cabeça, transportando, entre o quadro das varas, ao som dulcificante da Filarmónica, intercalado com o solene cantar dos foliões e o repicar dos sinos, o símbolo do Paráclito nas ilhas – a coroa. Desfilavam como princesas, ostentavam-se como rainhas e sorriam como fadas, numa sobranceria vaidosa, arrogante e presumida. E ela, ali postada na beira do caminho, a vê-las passar, acabrunhada, triste, sentindo-se até como que vilipendiada mas cuidando, em sonhos, que um dia havia de ser ela a pisar aquela passadeira de encanto, de fascínio e de glória. Agora era a promessa do tio a espevitar-lhe a flama da esperança. Ela postava-se como candidata primeira, única e natural para transportar a coroa e o ceptro da glorificação.
Os meses seguintes, que mediaram a chegada do tio, foram de um sonhar permanente e de um arquitectar constante de projectos, de imagens e de fantasias. O vestido, a capa, o diadema, tudo havia de ser trazido da América e haviam de ultrapassar em brilho, em grandiosidade, em fascinação e em riqueza todos os que ao longo dos anos haviam desfilado pela rua Direita, tanto no cortejo da Casa de Cima como, sobretudo, no da de Baixo. Ela seria, incontestavelmente a mais bela “rainha” de sempre e as outras, sobretudo as que outrora haviam ocupado o trono da sublimidade, agora haviam de ser elas a postarem-se ao lado do caminho, roídas de inveja, apoucadas com a sua sumptuosidade, desfeitas com a sua fascinação, humilhadas com a imponência dos seus trajes e a renderem-se à indiscutível opulência da sua beleza.
Os meses deslizaram vagarosos e os dias decorreram lentos. Parecia que o tempo não passava e aquele dia nunca mais chegava. O pai, a mãe, ela e os irmãos haviam-se envolvido no arranjo e preparação da chegada de tão desejados visitantes. Os americanos haviam de ser muito bem recebidos. Para além das duas reses destinadas ao cumprimento da promessa, o Cambado comprou um bácoro e colocou-o à engorda, a mulher, a Júlia, pôs uma galinha de choco e criou uma ninhada de pintos e os filhos fartaram-se de sachar e cobrir inhames na Cabaceira e no Moledo Grosso. Mais perto da chegada, caiou-se a casa, deu-se um arranjo na retrete, compraram-se pratos e tijelas novos, uma celha de madeira para os banhos e uma cadeira de vimes, para a sala, onde o mano havia de gostar de se sentar, talvez a fumar o seu charuto. Na véspera da chegada, matou-se um carneiro, cozeu-se pão de trigo, deu-se uma barrela à casa duma ponta à outra e colocaram-se os melhores lençóis e as mais belas colchas nas camas em que os americanos haviam de dormir.
Finalmente chegou o dia do Carvalho. O Cambado e os dois filhos mais velhos, alta madrugada abalaram, a pé, para Santa Cruz. No regresso, a partir dos Terreiros, carregaram, malas e malotes e toda a bagagem que os americanos traziam. A Verónica e os mais novos foram esperá-los à Eira da Cuada enquanto a mãe ficou em casa a guisar o carneiro, a fritar a linguiça e os torremos e a cozer os inhames.
Ao chegar à Fajã, no entanto, o mano Augusto, alegando que não queria dar trabalho à cunhada, nem incómodos à família do irmão que muito prezava, informou que decidira hospedar-se, juntamente com a mulher e os filhos, em casa do compadre Honório. Que ali ficava mais à larga, que a casa era bem maior, que incomodava menos o irmão e a família e que há muito que o compadre os havia convidado para lá ficarem. Que o mano não lhe levasse a mal, mas não lhe passava pela cabeça fazer uma desfeita daquelas ao seu compadre e amigo, a quem já devia muitos favores.
E no dia do pagamento da promessa, durante o cortejo do Espírito Santo, foi a filha do compadre Honório que, a abarrotar de vaidade e arrogância, trajando um vestido de tule branco, capa de veludo vermelho e diadema de prata na cabeça, tudo trazido da América nas malas que o Cambado e os filhos haviam acarretado dos Terreiros até à Fajã, entre o quadro de varas e acompanhada do som da Filarmónica, do cantar dos foliões e do repicar dos sinos, transportou os inequívocos símbolos do Paráclito nas ilhas – a coroa e o ceptro.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».