Solidariedades da treta
Se nos Açores os efeitos sociais da crise (ainda) não se fazem sentir como no Continente e nas Flores (ainda) não tanto como noutras ilhas, o certo é que, à nossa escala, começam a intensificar-se diversos sinais de carências várias, nalguns casos muito preocupantes e reveladores de que a palavra «miséria» entrou de novo no nosso quotidiano, com um grau de gravidade que há muito não conhecíamos e estávamos habituados a considerar uma «história do passado».
É claro que hoje em dia a realidade social não tem nada a ver com a vivência de outrora, donde, para problemas novos exigem-se novas respostas, isto, sem embargo do indeclinável papel que cada membro da comunidade, individualmente, e cada família, por junto, têm o dever de continuar a exercer, não obstante a rede de mecanismos directa ou indirectamente apoiados pelo Estado, incomparáveis com o suporte que existia dantes.
Várias são as instituições de solidariedade social e muitos são aqueles que através delas dão o exemplo de como bem aplicar os recursos disponíveis, para além das suas acções no dia a dia serem pautadas por um sentido de «dever», «serviço», «missão», e até «sacrifício», que não têm preço e não estão escritos em lado nenhum, mas antes traduzem os bons princípios que devem presidir a conduta de quem oferece o seu labor à causa social/comunitária. Esses hão-de rever-se nestas linhas. Outros não... santa paciência! Há verdades que a verdade manda dizer: Assim, não pode ser!
Não há vila ou concelho que não tenha: uma Santa Casa da Misericórdia; uma Casa do Povo; uma Associação ou Movimento de benemerência disto ou daquilo; um Agrupamento de Escuteiros; um Centro da Cáritas; uma Obra da Paróquia; um Lar de Idosos; um Serviço de Acção Social Municipal; uma repartição dos Serviços de Segurança Social do Estado... e o "diabo a sete". Capelas e mais capelinhas e mais capelas!
Sabem por que é que essas entidades, muitas vezes, na verdade, são criadas e para que servem? Para sorver dinheiro ao Estado - a "fonte" acaba por ser sempre o orçamento público - para justificar uma sede, órgãos sociais, um departamento administrativo, (que alberga filhos e enteados), recursos e meios, ao serviço dos interesses dos capatazes, por sua vez "feitos" com a necessidade de albergar as sua "clientelas", que lhes justificam o sustento... Isto tem que ser dito, de nada vale assobiarmos para o lado ou sermos hipócritas.
No "País profundo", que não apenas nos maiores centros urbanos, onde se contam as ilhas, a questão social é já um caso muito bicudo também. Importaram-se os males dos meios maiores e perderam-se as virtudes dos pequenos.
A classe média, maioritária, está “entalada” pelos Bancos até à raiz dos cabelos. Nos Açores, vão valendo os subsídios à lavoura, os “favores” públicos e os rendimentos mínimos, para assegurar liquidez às famílias.
Os miúdos, não aprendem a ler, escrever e contar, não sabem dizer “Bom Dia”, e são alimentados a refrigerantes, batatas fritas e "bollycao". Os professores vão dar aulas "à rasca", com medo dos pais. Os idosos, sobrevivem aflitos, em cada vez maior solidão e passam necessidades. As toxicodependências, para lá do álcool, deixaram de ser um fenómeno urbano e germinam como junco. O planeamento familiar é de gargalhada. A higiene tresanda. O sentimento de impunidade perante o crime começa a ser regra geral. O individualismo tomou conta das comunidades, que estão a perder completamente a noção de consciência colectiva. Poucos são os que ainda se fiam da “palavra dada”, etc., etc., ... enfim, andamos todos a fazer de conta.
E a providência social, em cada uma das localidades? Onde está ela?
Caiu largas vezes, definitivamente, nas mãos de caciques da pior espécie, que pensam assim: "vamos criar/ocupar uma instituição porque depois isso dá direito a protocolos com a Autarquia e o Estado e é uma maneira de sacar dinheiro e benesses”.
Depois, o Estado, central ou regional, também ele demissionário, vem com a lógica do «descentralizar». E toca a distribuir e a «adubar». Na paga, de 4 em 4 anos, muitas dessas ditas IPSS´s (instituições públicas/particulares de solidariedade social) lá vão movendo as suas influências e arregimentando votos para o "cavalo certo”, em que apostam, consoante os arranjos privados mais convenientes.
Resumindo. A raiz do problema está em duas coisas; dinheiro e votos. A caridade cristã serve de “tapa poros”, abrilhantado com vernizes de apregoada “Solidariedade".
Essa mesma solidariedade que, com tantos meios afectos, nunca foi tão perversa, cínica e corrupta como agora, diga-se, Preto no Branco.
Ricardo Alves Gomes
PS: Para quem se der ao trabalho aqui ficam algumas ligações, as quais ajudam a ter ideia das “capelas” existentes, e que todos os dias sorvem o escanzelado Estado: