A Fajã Grande dos anos 1950 a três tempos
II - Pela manhã fora, toque, toque
Após o almoço da manhã seguia-se a parte mais tormentosa e cansativa do dia, em termos de trabalhos agrícolas. Era por volta das nove horas que se iniciava esta segunda etapa de trabalho intenso e extenuante, a qual terminava ao início da tarde. Na Primavera era o tempo de preparar os campos e semear os milhos, tarefa demorada porquanto as terras tinham que ser adubadas com esterco ou sargaço, muitas vezes acarretado às costas. Depois era o lavrar com o arado de ferro, desfazer leivas e torrões com a grade, atalhar e, finalmente, semear o milho com o arado de pau. Já crescido, o milho tinha que ser mondado, sachado e corrido e quando espigado era necessário espalhar e semear as forrageiras – trevo ou erva-da-casta – pelo meio. No Verão as manhãs eram ocupadas com a ceifa dos feitos nas relvas e terras de mato e o desbravar da cana-roca, um flagelo que infectava o crescimento das árvores e dos inhames. Era também necessário dar continuidade aos trabalhos agrícolas. Além disso, como o gado nesta estação do ano, devido ao excessivo calor, ficava fechado nos palheiros, era imperioso acarretar os alimentos que necessitavam. No Outono era a apanha dos milhos e o seu arrumo nos estaleiros, tarefa que ocupava não apenas as manhãs mas o dia todo. Além disso, havia muitas outras colheitas a serem recolhidas, nomeadamente, batatas, feijão, cebolas, etc. No Inverno eram as terras de mato o destino de homens e mulheres. Havia que cortar e recolher os incensos, alimento fundamental e quase único para os bovinos naquela estação do ano. Era também nesta altura que se sachavam os inhames e se cortava e serrava a lenha. O Inverno, porém, na Fajã Grande era bastante intempestivo e chuvoso, pelo que durante muitos dias os homens, impedidos totalmente de ir para os campos, a não ser para cumprir os serviços mínimos obrigatórios, aproveitavam a manhã para um merecido descanso, juntando-se à Praça, numa emblemática casa velha que ali existia. Conversavam, fumavam, discutiam, faziam negócios e jogavam às cartas, tendo como mesa um cesto com o fundo virado para cima. Bem pior era a situação das mulheres nesses dias, porquanto aproveitavam para remendar, costurar, fiar e efectuar outras tarefas domésticas.
Era pois pela manhã fora, por vezes conduzindo animais, que o povo caminhava com destino aos campos, a fim de realizar estes e muitos outros trabalhos, calcorreando caminhos sinuosos a abarrotar de pedregulhos, ladeiras íngremes, atalhos e veredas, por vezes carregando pesadíssimos sacos, cestos ou molhos, os homens às costas, com um bordão a servir de alavanca e contrapeso e as mulheres à cabeça, com uma rodilha de pano a proteger-lhe o cocuruto.
Pela estrada plana, toque, toque, toque,
Guia o jumentinho uma velhinha errante.
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toque, toque, toque,
A velhinha atrás, o jumentito adiante!...
Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toque, toque, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao Sol.
Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque, toque, toque, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...
Mas na Fajã Grande, freguesia com grande parte do território encastoado entre colinas e outeiros, os caminhos não eram nada planos e o jumento, na década de 1950, ainda era um animal raro naquela freguesia. Para além de se ir levar a moenda ao moinho, com alguma frequência havia muitas outras tarefas a realizar, mas, à boa maneira da moleirinha de Guerra Junqueiro, homens, mulheres, velhos e crianças caminhavam todos os dias, manhã fora, toque, toque, a trabalhar árdua e penosamente, a fim de, ao início da tarde, ao chegar a casa dispor, apenas e tão só, de um simples e parco jantar.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».