A razão do nome “Poço do Bacalhau”
O Poço do Bacalhau é um dos mais interessantes e míticos lugares da Fajã Grande e, juntamente com a queda de água da Ribeira das Casas que sobre ele cai abruptamente, forma uma das mais belas e extraordinárias paisagens da ilha das Flores, quiçá dos Açores.
A origem deste topónimo permanece bastante misteriosa porquanto se revela difícil de desvendar. Há no entanto que considerar algumas hipóteses plausíveis e aceitáveis, enquadradas na lógica da nomenclatura de muitos outros lugares da mais ocidental freguesia açoriana.
Em primeiro lugar a hipótese que parece mais lógica é a de que o nome tenha algo a ver com a palavra bacalhau, que designa o tão apreciado peixe pescado no Atlântico Norte, quer na sua forma natural quer escalado e salgado. É verdade que o bacalhau terá rareado desde sempre na Fajã Grande. No entanto, não é de descartar a hipótese de Diogo de Teive e outros navegadores portugueses nas suas viagens de ida e, sobretudo, de regresso do norte do Atlântico, tenham ancorado na costa oeste da ilha das Flores, na baía da Ribeira das Casas, quer para recrutarem marinheiros quer para se abastecerem de água e víveres, permitindo assim que a população primitiva desta localidade conhecesse o bacalhau, talvez até o transacionasse trocando-o por produtos agrícolas. Cuida-se, segundo a tradição oral, que outrora algumas das habitações da Fajã Grande ficariam localizadas junto à Ribeira das Casas, no lugar hoje chamado Covas, tendo sido mais tarde soterradas por uma enorme ribanceira cujos vestígios ainda hoje são bem visíveis. O próprio nome da ribeira parece estar ligado a tal crença. Ora, sendo este lugar povoado seria possível ser o poço uma espécie de local de esconderijo ou de armazenamento do referido peixe. Também é possível que a sua água fosse fundamental para o abastecimento das embarcações que faziam ali escala na demanda do bacalhau. Trata-se, no entanto, de meras e vagas hipóteses que parecem fortalecer-se com o que escreveu João Gomes Vieira no seu livro «O Homem e o Mar – Os Açorianos e a Pesca Longínqua nos Bancos da Terra Nova e Gronelândia». Nesse livro aquele historiador florentino afirma que os açorianos destacam-se, desde cedo, na pesca à linha nos navios bacalhoeiros. Aliás, tudo leva a crer que pescavam na Terra Nova desde os tempos dos Cortes-Reais e a certeza de que o faziam a partir de 1500, havendo a considerar este dado histórico inapelável: os bacalhoeiros, nas suas viagens de regresso a Portugal, faziam escala nos Açores. Mais acrescenta que o contributo insular foi de tal forma importante que, nas últimas décadas do século XIX, toda a frota bacalhoeira portuguesa se encontrava na posse de armadores dos Açores, ainda que operando a partir da Figueira da Foz e de Lisboa.
Uma outra hipótese, talvez ainda menos provável do que as anteriores, é a de que o poço ou o lugar onde ele se situa tenha granjeado o nome da mesma forma que o receberam outros lugares da Fajã Grande, como Mateus Pires, Fonte Simão, Ribeira de José Fraga, o ilhéu do Constantino, o Poço do Justino ou a Escada do Amaro, estes dois últimos evoluindo para Pocestinho e Escadamar, por serem o apelido do respetivo proprietário ou de alguém envolvido num acontecimento excecional, ocorrido naquele lugar, como é o caso do lugar de Mateus Pires, lá para os lados da Alagoinha, onde se cuida que um homem com este nome terá sido ali soterrado debaixo duma ribanceira. É verdade que o apelido Bacalhau embora comum em muitas regiões do país, presumivelmente poderá apenas escassamente ter chegado à ilha das Flores. Mas neste caso a toponímia pode até estar ligada à lenda segundo a qual um déspota, deportado foi para lá atirado depois de morto, numa deturpação de um qualquer nome estrangeiro.
Uma outra hipótese é a de que sendo possível observar entre as pedras do fundo do poço, na sua parte menos profunda e junto das margens, grandes iroses, que na sua cor e forma se assemelham ao bacalhau, poderá ser uma mera fantasia, mas também é possível que estas tenham sido confundidas com aquele peixe ou até substituídas por ele como alimento.
Como todas estas hipóteses, embora viáveis, possam revelar uma débil credibilidade e ainda menor fundamento histórico, não será de descartar ou deixar de considerar-se ainda uma última, embora ténue e pouco consistente. Na década de 1950 havia quem fosse às escondidas banhar-se nas frescas águas daquele poço. Naturalmente que em tempos anteriores o mesmo terá acontecido. Mas para se nadar ali, dada a crença mítica de que o poço era misterioso, tinha redemoinhos e de que junto à rocha não tinha fundo, era necessário que quem se atrevesse a nele mergulhar tivesse que nadar bem, ou num sentido metafórico nadar que nem um bacalhau.
Duma forma ou de outra o nome ganhou consistência e permaneceu, irrevogável, até aos dias de hoje e, assim como o próprio poço, a razão de ser do seu nome manter-se-á sempre envolta em brumas de mistério, como enigma transcendente que, no entanto, em nada ofusca ou sequer belisca a sua beleza natural e a grandiosidade da paisagem em que se enquadra.
Um leitor acrescentou a estas mais uma hipótese segundo a qual o nome do poço estaria no formato do cimo da rocha, de onde se desprende a cascata, que na realidade se assemelha ao rabo de um bacalhau encimando aquela frondosa vertente.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».