«Brumas e Escarpas» #22
A caneta de Mister Robert
No início da década de 50, vindo da Califórnia, chegou à Fajã Grande um homem já de idade avançada, com a intenção de não mais regressar aos Estados Unidos. Mister Robert, assim se chamava o velhote, fixou-se definitivamente na Assomada, em casa de uns sobrinhos. Saíra das Flores ainda criança e nunca mais voltara à Fajã, desconhecendo por completo pessoas, usos e costumes. Mas, como era muito curioso e desconfiado, desde de logo manifestou uma enorme apetência para, como se dizia, “meter o nariz em tudo”.
Alguns dias após a sua chegada, ao passar em frente à Igreja paroquial, decidiu entrar, com a denodada e exclusiva intenção de ver e conhecer o templo. Ao transpor a porta do guarda-vento, reparou, para espanto seu, que por cima da pia da água benta havia uma minúscula prateleira onde estavam colocados, muito bem arrumadinhos, uma série de pequenos objectos: pentes, ganchos de cabelo, terços, medalhinhas e até um canivete com o ferro enferrujado. Admirado com aquela panóplia de objectos e na tentativa de descortinar a razão por que estavam ali, dirigiu-se à Maria Eduarda, que, como habitualmente, permanecia horas a fio no templo, em oração. Ela, colocando, momentaneamente, os interesses de tão ilustre e invulgar visitante acima dos divinos e assumindo a sua qualidade de divulgadora mor dos usos, dos costumes e de tudo o mais que se passava na freguesia, interrompeu de imediato as suas rezas e veio muito prazenteira explicar: Que aquilo eram objectos perdidos por alguém e que as pessoas ao encontrá-los, ali os colocavam para que o verdadeiro dono, ao entrar na igreja e ao meter a mão na pia da água benta, visse o objecto que perdera e assim o recuperasse.
Mr Robert achou aquilo “very interesting”. Era na realidade uma magnífica estratégia, nunca imaginada pelos americanos, para, com a colaboração de Deus, “devolver a César o que é de César”. Nem na Califórnia e possivelmente em nenhum outro estado americano se havia algum dia projectado ou posto em prática tão simples e inovadora forma de restituir a cada um o que, por direito próprio, lhe pertencia.
Encantado com aquela originalidade que engrandecia a admiração que começava a ter pela simplicidade e honestidade das gentes das ilhas, vai disto e, para testar o sistema, tira do bolso interior do seu casaco uma caneta de tinta permanente, novinha em folha, colocando-a na dita prateleira, no meio dos outros objectos.
Saiu do templo e continuou o seu périplo até ao Porto. Ao regressar a casa, algum tempo depois, voltou a entrar na Igreja, não para meter a mão na água lustral mas para reaver o que era seu. Qual não foi o seu espanto ao verificar que lá ainda estavam alguns objectos, mas outros, entre os quais a sua caneta, tinham desaparecido.
Admiradíssimo e furibundo foi ter com a Maria Eduarda, recriminando-a por o ter enganado. É que tinha ficado sem o que era seu, sem a sua caneta, nova e caríssima, que estimava tanto e que usava apenas para assinar os cheques.
A Maria Eduarda, apesar de beata, não era parva e explicou-lhe que afinal não era bem assim o que lhe tinha dito e esclareceu:
- Lá, nunca colocámos o que é nosso, mas sim os objectos que encontrámos e que não nos pertencem, pois, segundo a lei de Deus, “não devemos reter ou danificar os bens do próximo”. Colocar lá o que nos pertence é desafiar a justiça divina. Devemos lá colocar somente os objectos alheios. Ora Mr Robert colocou lá o que era seu… possivelmente Deus o terá castigado. – E concluiu com veemência: - Com a justiça divina não se brinca, Mr Robert, com a justiça divina não se brinca.
Mister Robert saiu exasperado, desferindo impropérios sucessivos e prolongados, em americano, à pia da água benta, à Maria Eduarda, à honestidade da gente das ilhas, à Igreja, ao clero em geral e até à justiça divina.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».