Uma latinha de milho
Nos dias seguintes ao naufrágio do Papadiamandis, nos escolhos da Ponta do Baixio, nos mares revoltos e bravios da Fajã Grande, a área circundante ao acidente, quer em terra quer no mar, encheu-se, não apenas de destroços do navio, mas também de todo o tipo de objectos, latas, caixas, caixotes e bugigangas diversas. Como era natural em situações semelhantes, a maioria dos habitantes da freguesia dirigiu-se, depois de salvos os náufragos, para o local do acidente, não apenas para ver e observar de perto os restos do navio naufragado, mas também, para vasculhar o baixio de uma ponta à outra, na esperança de juntar um ou outro objecto que tivesse alguma utilidade ou simplesmente pudesse ser guardado, para a posteridade, como recordação e testemunho de tão trágico evento. É que, para além da destruição do navio, foram 28 vidas que estiveram em perigo durante horas e horas, as quais, a muito custo, foram salvas devido aos esforços e empenho não só das autoridades mas também da população da freguesia.
Perante esta “caça ao tesouro”, cedo se prontificou a Guarda Fiscal para defender, com unhas e dentes, o local dos “temíveis predadores”. De Santa Cruz veio uma brigada de homens, que fez círculo àquela zona do baixio, na tentativa de impedir que, quem quer que fosse, tirasse dali coisa nenhuma. Nunca se soube o que cada um conseguiu encontrar e, à socapa dos guardas, levar para casa. Uns terão levado muito, outros alguma coisa, alguns pouco e a maioria, nada. Francisco, apesar de criança órfã, frágil e indefesa também tentou a sua sorte. Deslocou-se ao areal, transpôs a orla negra do baixio e observou, de perto, o navio com o seu casco negro a desfazer-se nos rochedos e as ondas altivas a saltarem-lhe sobre o convés, já quase desfeito. Por fim decidiu regressar a casa, afastando-se do local, sem procurar muito ou se esforçar por encontrar o que quer de fosse. Eis senão quando, de repente, viu, debaixo da aba duma pedra, uma pequena lata. Baixou-se e juntou-a, num misto de alegria e felicidade. Era uma lata, uma pequena lata, uma simples lata, mas era o seu troféu. Talvez levasse apenas um quarto de litro de leite. Mas estranho! As letras que tinha nos papéis que estavam colados naquela lata, eram iguais às que já aprendera na escola, mas não conseguia ler o que ali estava escrito. Grego não era, devia ser americano. Curiosamente no papel, ao lado das letras, estavam desenhadas maçarocas de milho. O enigma estava decifrado: a lata continha milho. Francisco achou aquilo muito esquisito. Então os gregos ou os americanos metem milho dentro de latas?! Ele cuidava que dentro de latas só se metiam sardinhas e atum! Pensou atirar com a lata, pois milho pronto para cozer ou assar tinha ele muito, nas Furnas, no Porto, no Mimoio, na Bandeja e no Descansadouro. Não precisava daquele, nem nunca havia comer milho guardado dentro duma lata. Bom para comer era o milho fresquinho, com a maçaroca bem assada e embrulhada na própria casca, ainda verde. Mas depois lembrou-se do orgulho que seria chegar a casa com aquele pequeno troféu, mostrá-lo aos irmãos, aos tios, aos amigos e até na escola, aos colegas e à senhora professora. Por isso guardou-a muito bem escondida, debaixo da soera, sobre a barriga, o mais disfarçadamente possível. É que um guarda estava mesmo ali, à frente dele, à mão de semear. Este, vendo o fedelho a esquivar-se, desconfiou. Aproximou-se e de imediato, carregando no tom de voz e na postura da autoridade que cuidava representar, gritou:
- Olha lá, ó badameco! Mostra o que levas aí escondido!
- Mas eu não levo nada! – respondeu a criança, tentando esquivar-se.
- Ai levas, levas – e agarrando-o por um braço, ordenou. – Ora deixa ver o que levas aí debaixo da soera.
Como o garoto teimasse, tentando fugir e resistir às potentes garras da autoridade, o guarda pegou no cacete, atirando-lhe uma forte paulada nas pernas. A lata de milho caiu, rolou pelo chão, enquanto o miúdo, lavado em lágrimas, fugia dali a sete pés, não fosse o guarda dar-lhe uma segunda cacetada, mais forte e mais dolorosa do que a primeira.
Passados alguns dias, toda a Fajã ficou alarmada com o fumo e o fogo que saíam da chaminé duma casa, pertencente aos pais de um dos guardas que tinham feito vigilância ao naufrágio do Papadiamandis. Cuidando que era um incêndio, acorreram os vizinhos, acudiram os transeuntes e até os sinos da igreja tocaram a rebate. Labaredas de lume enormes e alaranjadas saíam pela chaminé, acompanhadas por negros rolos de fumo e de rebentamentos e estalidos estranhos. Nada de grave, afinal. Apenas alguém, inadvertidamente, incendiara alguns very lights retirados do Papadiamandis. Além disso, espalhados por toda a casa, podiam ver-se variadíssimos objectos e bugigangas diversas retirados dos destroços do navio naufragado. Entre eles estavam várias latinhas de milho.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».