A Madrinha
O percurso entre a Assomada e as relvas dos Lavadouros, que ele percorria quase diariamente, era longo, silencioso e sombreado, em grande parte, por árvores enormes, gigantescas, com copas esverdeadas a verter murmúrios, sobretudo quando assoladas pelos ventos do Norte. E então com uma lesma daquelas que era a Formosa, já velha e alquebrada, a arfar, a soluçar hesitações, a dirimir escorregadelas e a distanciar-se, cada vez mais, da Lavrada e da gueixa alfeira que seguiam lá na frente, céleres e expeditas. Uma infinidade de tempo! Dava para pensar, para imaginar, para sonhar. Por vezes até se sentava nos degraus do portal duma horta ou nas bancadas dum descansadouro. A Formosa, então, feliz, parava, resfolegava, escorria baba pela boca e estancava muda e queda que nem um calhau. As outras lá na frente a lambiscar em maroiços e a aguçar os chifres nos tufos das paredes e a molengona, ali parada que nem uma estátua.
Mas era sobretudo no regresso, quando sozinho, que se sentava sobre as paredes das relvas da Alagoinha, a escutar o sibilante murmurar do vento no denso arvoredo da rocha, a ouvir o canto dos melros a saltar de faeira em faeira, que o crisma não lhe saía da cabeça. O pároco já havia anunciado, na igreja. Qualquer dia o bispo estava aí. A Dona Florinda, a catequista, já lhe enchera os ouvidos: “A Confirmação ou Crisma é um sacramento muito importante, faz de nós soldados de Cristo”. Nada disso, porém, lhe interessava. Não pretendia ser soldado de Cristo, nem de ninguém. Queria crismar sim, queria mesmo muito crismar, mas simplesmente para ter uma madrinha, que ele próprio já escolhera.
Na realidade, desde há muito que se afeiçoara à Dona Laura e agora tinha por ela um grande amor, uma espécie de paixão infantil e inocente, pese embora ela fosse bastante mais velha do que ele e, além disso, já estivesse comprometida. Havia de casar por procuração com o bisbórrias do Deodato que a abandonara, partindo para o Canadá.
A Dona Laura era sua vizinha e, por isso mesmo, com ela convivera desde pequeno. Agora porém outro galo cantava. Já era um homenzinho, começava a perceber que o mundo era composto por homens e mulheres. Inicialmente sentira por ela um carinho muito estranho, depois uma amizade estonteante e agora uma atracção quase louca, mas inocente. A Dona Laura não lhe saía do pensamento. Ela, também, contribuíra para isso. Todas as tardes vinha sentar-se na escadaria do seu pátio, sozinha, a bordar. Inicialmente apenas parava quando por ali passava, para a cumprimentar. Um dia, porém, ela convidou-o a subir, a sentar-se, um pouquinho, junto dela. Falaram, conversaram, riram, contaram histórias e ela até encostou o seu corpo ao dele, ombro com ombro. A partir daí eram tardes e tardes inteiras, com o povo a murmurar. Que murmurassem, que pouco lhes interessavam mexericos! A Dona Laura, que até já exigira que a tratasse só por Laura, não lhe saía da cabeça. Queria-a para si e, na sua inocente intenção, só o poderia fazer de uma única maneira: convidando-a para sua madrinha do crisma.
Do baptismo tinha padrinho e madrinha, mas era como se os não tivesse. O primeiro pisgara-se para a América e nunca mais lhe ligara. Nem um canivete! A madrinha, uma chata, sempre a implicar com ele, sempre a recriminá-lo, a condená-lo, descontente com tudo o que fazia. Parecia que o odiava. Havia de vingar-se agora no crisma escolhendo uma madrinha com jeito, uma madrinha às direitas, uma madrinha que gostasse dele que o amasse como ele também a amava.
Um domingo, depois da missa, o pároco anunciou, sem rodopios, aos que iam crismar: “Os rapazes escolhem um padrinho e as meninas, uma madrinha”.
Ficou lívido, mudo e tresloucado! Um padrinho?! Encheu-se de coragem e indagou: “Porquê um padrinho? Não posso escolher uma madrinha?”
A resposta do prebendado foi clara, decisiva e misturada com alguma repreensão: “Que nem pensasse nisso! Que tivesse juizinho! Eram as normas da Santa Madre Igreja, que nem sequer se podiam discutir, porque o Papa era infalível. Sempre fora assim e sempre havia de ser”.
Revoltou-se, insurgiu-se e até decidiu que não havia de crismar. Mais se indignou, porém, quando, ao chegar a casa, o pai lhe atirou à cara, de chofre: “Vais convidar o senhor Costa para teu padrinho do crisma. Devo-lhe muitos favores, além disso, é um homem bom, honesto e rico. Ser afilhado dele é uma honra”.
Sem alternativa, com uma fúria desmesurada, foi despejar toda a mágoa e toda a dor no regaço da Dona Laura, que, sorrindo docemente, lhe acariciava o rosto amaciado pelas lágrimas. E baixando o seu corpo sobre o dele, como se o fosse beijar, sussurrou-lhe docemente: “Os nossos padrinhos ou madrinhas do crisma são quem nós queremos. Eu vou ser a tua madrinha”.
E no dia do crisma, quando o sucessor dos Apóstolos, de mitra na cabeça e báculo na mão esquerda, lhe desenhava na testa, com o polegar da direita embebido em óleo perfumado, uma cruz, ele sentiu uma mão estranha no seu ombro. Voltando-se, de soslaio, viu, logo ali na primeira fila da frente, a Dona Laura a acenar-lhe afirmativamente. Sentiu, então, que aquela mão que pousava sobre o seu ombro era precisamente a dela, a da Laura, a sua madrinha do coração.
Carlos Fagundes