Casa com janela sobre o mar
Tia Jerónima sentou-se à janela da sala, apoiando-se com o braço direito, debruçada sobre o peitoril. O Sol há muito que se havia perdido no horizonte mas reinava, ainda, uma claridade, serena, silenciosa e acolhedora. A janela, encravada na empena oeste do minúsculo casebre, abria-se e despejava-se sobre um pequeno e estreito atalho, feito de pedregulhos toscos, emaranhados entre cascalho, desenhado sobre uma rocha a arfar de silvados e vinhedos selvagens, ali mesmo em frente e encavalitada sobre o mar. Descaído sobre o oceano, que se estendia como um enorme tapete azulado e fofo, aquele alcantil que, para além de uns canaviais e uma ou outra figueira ressequida, apenas carregava sobre si a casa de Tia Jerónima, assemelhava-se a uma espécie de trincheira natural, contra a qual, em dias de vendavais e tempestades, o mar se atirava em laivos de raiva e uivos de ganância.
Naquela noite, porém, o mar estava calmo e sereno. Abraçado à intimidade do anoitecer, apenas fazia sentir a sua presença através de uma ou outra pequena onda que, rolando lentamente, se vinha desfazer, num leve e suave murmúrio, junto ao negro areal que o separava do aclive. Uma irrequieta tranquilidade atraente! Um murmúrio de silêncio enternecedor!
Tia Jerónima permanecia, absorta e alheada, sentada à sua janela com vista sobre o mar, com a mão direita sobreposta ao olhar, como que a tapar-lhe as incandescências que o espectro do astro-rei, no seu ocaso, deixara desenhadas no horizonte em traços amarelos, alaranjados, vermelhos e violetas. Mais além, mas muito longe, um crepúsculo emaranhado crescia muito lentamente e parecia tornar-se madrugada, cobrindo uma enorme cidade, de casas altíssimas, comboios, “mexins”, vapores e soldados, atravessada por rios da cor da esperança.
Sentada à janela, com o braço esquerdo debruçado sobre o peitoril e com a mão direita sobre o olhar, a aclarar-lhe incandescências ofuscadas, tia Jerónima via as casas a erguerem-se ao céu, o burburinho das ruas atafulhadas de pessoas, o fumo que se elevava das fábricas, os comboios que passavam a correr, os rios a deslizarem com suavidade, os barcos a perderem-se no horizonte, os homens a arfarem cansaço e os soldados a partirem para a guerra. No ar surgiam pássaros de espuma e nos rios navegavam barcos de papel, cor de laranja, carregados de lágrimas e soluços. Depois a cidade adormecia, as casas fechavam as janelas, forravam-nas de madeira, vestiam-se de escuro e dos telhados saíam rolos de fumo, negro e estilizado. A cidade adormecida era como se fosse uma grande fábrica, uma espécie de fóssil industrial que homens, sonolentos e com bonés de veludo, enfiados até às orelhas, nas manhãs escuras e friorentas, procuravam com avidez, engolindo-o como se fosse um chocolate gigante. Depois transformava-se numa labareda de fumo aguerrida e devoradora e regressava à florescência do casario que, agora, sobressaía mais tenazmente, tornando o universo esverdeado e salpicado de manchas brancas. E os homens, transformados em pastores, agarravam, com uma ganância desusada, aquelas manchas, enchendo-as dentro de sacos, carregando-os às costas como se fossem rolos de lã ou de linho. E a tia Jerónima, sentada à janela da sua casa, também deslizava naquele universo como se fosse uma nuvem de papel, caminhava como se fosse a sombra de uma árvore desfolhada, voava como se fosse um pássaro perdido e sem rumo.
E lá, em frente à casa com janela sobre o mar, a noite crescia desalmadamente, tornava-se completamente escura, sem Lua e com as estrelas muito tímidas e miudinhas. Mas a tia Jerónima permanecia sentada à sua janela, com o braço esquerdo debruçado sobre o peitoril e com a mão direita a anafar o silêncio da noite, a açular-lhe sonolências perdidas, a acariciar os sabores do escuro, emaranhada em sonhos, ora de encanto e alegria ora de dor e sofrimento. Depois, quebrando um silêncio torturador, tia Jerónima soluçava e estremecia, imaginando o suplicar dos braços agonizantes de alguém que desaparecera, com o Sol, lá no outro lado do Mundo.
E lá pela noite dentro, já quase madrugada, tia Jerónima acordou estrebuchada. Fechou a janela que ficava sobre mar e, na claridade tímida duma vela colocada à cabeceira da sua cama, rezou, como fazia todos os dias, uma oração crente e purificadora, por alma do seu António que a “Calafónia”, fatalmente, nunca lhe devolvera.
Carlos Fagundes