sábado, 2 de junho de 2012

«Brumas e Escarpas» #42

O Bolo do Tijolo

Sabe-se hoje que o milho apenas começou a ser cultivado nos Açores no século XVIII e que os fornos de lenha só foram autorizados nas ilhas a partir do ano de 1766. Além disso, nessa altura, eram apanágio exclusivo dos capitães-donatários e das famílias mais ricas e abastadas. Mas mesmo quando generalizado o uso do forno pelas famílias mais pobres e pelo povo em geral, pelo menos nas Flores, quer o pão de trigo quer o de milho, era cozido apenas pelas festas, muitas vezes em casa de um vizinho ou de um amigo ou familiar. Não há dúvida pois que foi o bolo cozido em tijolos que alimentou durante anos e anos a população da maior parte das ilhas, nomeadamente a das Flores.

A Fajã Grande não fugiu à regra e, sendo assim, é muito provável que os seus primeiros habitantes recorressem ao tijolo para cozer o bolo, alimento fundamental no seu cardápio quotidiano, utilizando a farinha produzida através do cereal que haviam trazido e introduzido na Região os primeiros povoadores – o trigo. Sabe-se também que em tempos de más colheitas, de secas, de fomes e de peste, os habitantes da Fajã e de outras localidades das Flores, em tempos idos, até terão recorrido às raízes dos fetos, da junça e até do jarro ou ao grão do tremoço para fazer farinha e cozer bolo, juntando-a assim à do trigo, rara e escassa ou até substituindo-a na totalidade.

Na Fajã, na década de 1950, ainda se cozia, com muita frequência, o bolo de milho em tijolos de barro, sendo muitos deles, na altura, substituídos pelas “chapas” de ferro, privilégio dos lavradores com mais posses. Mas os primitivos tijolos, onde ainda se cozia o bolo feito com farinha de trigo, chamado “parrameiro”
(cf. Rui de Sousa Martins, in “O pão no arquipélago dos Açores”) eram feitos com uma laje de pedra basáltica, devidamente cortada e polida.

Os processos de cozer o bolo, quer com farinha de trigo quer com a de milho, eram, no entanto, muito semelhantes. Na Fajã Grande, nos anos 1950 o bolo do tijolo, de farinha de milho, era feito da seguinte maneira: a farinha de milho era peneirada para um selha de madeira ou para um alguidar de barro. De seguida era “aberta” no centro, fazendo-se uma cova onde se punha o sal, escaldando-a, isto é, deitando-lhe em cima uma boa quantidade de água a ferver, mexendo-se rápida e energicamente com uma enorme espátula de madeira, conhecida por “pá do bolo”. Este bolo, na Fajã, não levava fermento. Depois de escaldada, a massa devia arrefecer. A seguir juntava-se a mistura, na altura um pouco de farinha de trigo. Antigamente porém, e, no caso dos lavradores com menos posses, dado que a farinha de trigo tinha que ser comprada, a mistura utilizada era inhame ou batata-doce raspados. Finalmente amassava-se e formavam-se bolas que depois se achatavam e espalmavam com maior ou menor altura, colocando-as em cima de uma superfície lisa, sendo depois cortadas em quatro quartos que se iam colocando sobre o tijolo, depois de afogueado, bem quente e polvilhado com farinha. Quando se pressentisse que o bolo já está cozido de um lado, virava-se, com a ajuda de uma faca, colocando a outra face sobre o tijolo até a mesma se cozer. Esta operação requeria alguma atenção, técnica e, sobretudo, muita prática, a fim de evitar que o bolo não queimasse de nenhum dos lados ou se desfizesse, ao virá-lo.

Este bolo “saído do tijolo” a ferver, migado e misturado numa tigela de leite fresco ou então já frio, no dia seguinte a ser cozido, mas no leite fervido, era a “ceia” diária da maioria das famílias da Fajã Grande, sendo por vezes, e nas casas dos lavradores mais abastados, acompanhado com um pedacinho de queijo, com uma torta, com conduto de porco ou até com um prato de sopa, sobretudo de agrião.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

1 comentário:

Anónimo disse...

Bela imagem dos nossos hábitos tradicionais.
Mais uma vez bem haja, Carlos Fagundes.