Ilhas onde nunca seremos turistas
Nos Açores a revelação serão as pessoas e o facto de sermos recebidos como ilhéus temporários ao invés de turistas.
Oceano Atlântico, 36° a 43° de latitude Norte e 25° a 31º de longitude Oeste. São estas as coordenadas que permitem descobrir os Açores, as ilhas que Vitorino Nemésio descreveu como o "lugar do efémero e do contingente onde só o mar é eterno e necessário". Está assim desenhada a comparação perfeita entre estas ilhas, geografias do isolamento e a geografia da vida, também ela um lugar inevitavelmente transitório e incerto perante a magnitude incompreensível da existência.
Saramago no «Conto da Ilha Desconhecida» refere que "todo o homem é uma ilha" e que caso não saia de si próprio não chega a saber quem é. Eu acrescentaria que todo o homem que não conhece uma ilha não chega a descobrir o que é a humanidade.
Nos Açores a terra treme e eventualmente nasce das profundezas do Oceano, tempestades inesperadas irrompem do mar e do céu fustigando as casas, as colheitas, os barcos e os aviões. É nesta luta entre a dureza violenta (quase humorística) das condicionantes naturais e a persistência dos ilhéus que se estabelece a razão mais forte para visitar os Açores: a redescoberta da aventura que é a permanência humana sobre a terra perante a força e a beleza indomável da Natureza.
Esta aventura tecida pelos açorianos com proximidade e afecto, mas também por vezes com alguma dose de loucura e surrealidade, são o verdadeiro convite postal dos Açores. Não o é a Lagoa das Sete Cidades muitas vezes enevoada, a inacreditável Fajã de Santo Cristo que implica uma descida de seis quilómetros pela encosta escarpada ou a possibilidade (remota) de observar as baleias no seu habitat natural... Nos Açores a revelação serão as pessoas e o facto de sermos recebidos como ilhéus temporários ao invés de turistas.
O segredo é fluir ao sabor das idiossincrasias metrológicas das ilhas, da sua intensidade vulcânica, das histórias e do movimento dos seus habitantes. Só assim será possível vencer a frustração de uma visita adiada a uma fajã devido a uma tempestade anunciada, confortando-nos antes ao vê-la chegar lentamente num pequeno porto, acompanhados por cervejas, tremoços e pelas conversas de um grupo de pescadores. Só assim nos espantaremos com os anfitriões do alojamento local que nos recebem como se estivéssemos em casa, confessando que o que lhes custa mais é cobrar a estadia, pois apreciam a possibilidade do encontro e da companhia. Só assim não estranharemos que numa festa tradicional se ofereçam Sopas do Espírito Santo e vinho a todos os que quiserem festejar na ilha.
Só assim aceitaremos a necessidade dos açorianos em desafiar o perigo e a vida soltando os touros pelas ruas. Só assim é que perante as sinuosas e por vezes íngremes estradas facilmente arranjaremos boleia de um agricultor numa carrinha de caixa aberta descobrindo que muitos ilhéus emigram mas acabam sempre por voltar. Só assim é que em certas praias sentiremos que regressámos a uma infância perdida ao invés de ficarmos incomodados com o facto de não haver espaço para estender uma toalha. Só assim perdoaremos o facto de um jantar romântico poder ser interrompido por um açoriano alcoolizado falando em americano e cantando de forma desafinada todos os "hits" da Rádio Nostalgia, ao mesmo tempo que nos explica que teve uma banda de rock nos Estados Unidos e que se sente perdido ao regressar à ilha que o viu nascer. Só assim nos iremos rir com o humor irónico e cortante de um pai e um filho, donos do único café no limite de um trilho de caminhadas perante a chegada de turistas estafados, esfomeados e desidratados.
Poderia começar esta crónica anunciando que a «National Geographic Traveller» considerou o arquipélago como o lugar mais bonito do mundo ou chamando atenção para as promoções da RyanAir. Os Açores são donos de uma beleza que fere e nos deixa frequentemente numa overdose emocional, mas não é essa a razão pela qual os devemos visitar: devemos visitá-los para conhecer estes homens e mulheres que, como diz Sophia de Mello Breyner, "têm aprumo de proa", iluminando a nossa passagem pelo arquipélago com amizade e humor. Nunca seremos turistas nestas ilhas a não ser de nós próprios e isso por si só constitui uma viagem única.
De regresso a Lisboa e na procura cada vez mais difícil e incessante por alugar casa nesta cidade senti saudades dos Açores, dos seus lugares que foram momentaneamente meus. Talvez um dia regresse como aspirante a ilhéu definitivo.
Crónica de Sebastião Ferreira de Almeida, publicada no «P3».
Saudações florentinas!!
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