quinta-feira, 22 de abril de 2010

«Brumas e Escarpas» #4

O Fio: parte I - A subida da Rocha

Todos os anos, nos meses de Março e Setembro, na Fajã Grande os Cabeças anunciavam o dia de Fio. Quem tinha ovelhas bravas no baldio ou “concelho” preparava-se da melhor forma para o dia em que mais de metade da freguesia partiria para o Mato a fim de proceder à recolha e tosquia dos ovinos.
No dia marcado todos se levantavam alta madrugada. Os homens e os rapazes caminhavam para o mato, ainda noite escura. De acordo com a indicação dos Cabeças, uns iam pela Burrinha, outros pela Água Branca, outros pelo Queiroal, outros pelo Morro Alto e Pedras Brancas, enquanto alguns ficavam pelo Rochão Grande. Acompanhados pelos cães, protegidos do frio do Mato por grossos casacos e amparados a enormes bordões de incenso ou de araçá, partiam em bandos, arfando em loucas correrias e longas caminhadas, proferindo, em colaboração com os cães, uivos alucinantes e pungentes. Só assim era possível ajuntar as ovelhas bravas em toda zona do baldio, desde o Queiroal à Água Branca e à Burrinha e conduzi-las, depois, até ao “Curral” que ficava no Rochão Tamusgo, mesmo ali por cima da rocha dos Paus Brancos.
Em casa as mulheres enchiam cabazes e cestos de vimes brancos, usados habitualmente para ir lavar a roupa à ribeira, com pratos e tigelas a que sobrepunham postas de peixe frito, torresmos e toros de linguiça, talhadas de inhames, quartos de bolo do tijolo, fatias de pão de milho, pedaços de queijo, um bule cheio de café com leite, algumas maçãs e as tesouras de tosquiar.
Mal o Sol começava a raiar, iniciavam a longa e difícil caminhada em direcção ao “Curral”, a fim de chegarem a tempo para que os homens tivessem a primeira refeição logo a seguir à recolha das ovelhas.
Era no Alagoeiro que se juntavam para iniciar a íngreme subida da Rocha. Carregando pesados cestos e cabazes à cabeça, protegida com uma rodilha de pano, acompanhadas pelas crianças que levavam as cestas e os cabazes mais leves, formavam uma enorme e compacto pelotão que lentamente ia subindo as trinta e duas voltas da Rocha, delineadas em ziguezague, somando degraus após degraus, num escalar muito íngreme e difícil. Ao chegar à Furna do Peito, paravam. Era um dos lugares da Rocha institucionalizado para o descanso. A furna era uma enorme concavidade encravada num sítio mais saliente e pedregoso da Rocha e cuja forma se assemelhava a um gigantesco peito humano, razão óbvia do seu epíteto. Algumas entravam, poisavam os cestos e cabazes no chão e sentavam-se a descansar, enquanto muitas outras permaneciam nos degraus circundantes.
Pouco depois recomeçavam a subida, ora caminhando em descampados rectilíneos, ora escalando degraus feitos de pedras rústicas, protegidos por pequenos bardos de queirós e vinhático. A Fajã, agora, surgia como numa vista aérea, onde se divisava o vermelho escuro dos telhados, misturado com o verde amarelado das courelas, a mancha negra do baixio, recortada por caneiros e enseadas e o azulado do Oceano, no meio do qual o Monchique parecia maior e mais próximo.
As voltas da Rocha sucediam-se umas às outras até ao Descansadouro, onde as mulheres voltavam a poisar os cestos sobre uns muros ali existentes, efectuando um segundo e merecido descanso. Era o meio da subida. Pouco depois reiniciavam a marcha, cada vez mais amarga e mais cansativa.
Finalmente, chegavam à retemperadora Fonte Vermelha! Para além de saciar a sede, na que se dizia ser a melhor água da ilha das Flores, era a certeza de faltarem poucas voltas para o cimo da Rocha.
As mulheres de rosto avermelhado como maçãs, a arfar cansaço, a limpar suor e a proferir imprecações, retiravam os cestos da cabeça, guardavam as rodilhas de pano multicolor debaixo do braço e formavam fila diante da fonte de água miraculosa. Miraculosa porque balsamizava o cansaço, suavizava o esgotamento físico resultante de tão longa e íngreme subida e retemperava as forças e o ânimo para continuar. A água jorrava, incessantemente, de uma pequena e tosca bica, encravada num tufo da Rocha, onde cada um colocava uma folha de incenso ou de sanguinho, para ter acesso mais higiénico e eficiente ao consumo do cristalino e diáfano fiozinho.
Todas bebiam, muitas voltavam a beber e a fonte nunca secava. Corria sempre, dia e noite, jorrando um frágil mas contínuo veio, lá bem do interior da terra. Mesmo que ninguém a procurasse para beber, a água continuava a brotar e caía solitária mas sussurrante, formando, no chão, uma poça que, depois de cheia escoava pelos degraus e encostas da Rocha, transformando-se num pequeno regato.
O pelotão aglomerava-se de novo. A paragem junto à fonte proporcionara às mais retardatárias ocasião para se juntarem à coluna e reiniciar a marcha em conjunto. Finalmente a minúscula furna dos “Dez Reis”, a indicar que faltavam apenas dez voltas para o fim da subida.
Chegar ao cimo da Rocha era um alívio. O cansaço porém convidava a novo descanso, até porque os homens que por ali passavam diariamente haviam construído uma bancada de pedra tosca onde se sentavam a descansar, a conversar e a esperar uns pelos outros, quando vinha do leite do Queiroal. O ar era puro, fresco e exalava um cheiro a poejo e a “erva-néveda”. Além disso, dali podia apreciar-se uma vista deslumbrante. A poente vislumbrava-se a ampla fajã delimitada pelo oceano. Ao longe, a enorme planície da Fajãzinha, ladeada pela Rocha donde irrompiam cascatas de um esbranquiçado flavescente que, ora se perdiam entre o arvoredo, ora se salientavam nos socalcos das ravinas. Lá longe o casario disperso, a perder-se entre os cerrados de milho e os prados verdejantes. Depois a floresta de um verde escurecido onde se escondiam as poucas casitas da Cuada. Finalmente, mais ao perto, a Fajã, com as casinhas aninhadas junto à igreja e protegidas pelo Pico da Vigia e pelo Outeiro. Cercando o enorme semicírculo, o oceano, azul, infinito e cada vez mais inclinado.
Pouco depois a coluna começava a deslizar sobre alfombra fresca e perfumada das relvas, tornando a caminhada mais suave e menos perigosa do que a da Rocha. As casas da Fajã e o Oceano haviam-se perdido de vista. Agora só o verde silencioso e fresco do Mato. Ao fundo o Queiroal povoado de relvas, separadas por tapumes de hortênsias multicolores. Mais aquém, a Ribeira das Casas, na sua infância, com o seu enorme, temível e fundíssimo Caldeirão e, mais ao perto ainda, o Calhau do Touro, que nos dias de vento forte emitia aulidos semelhantes aos dos bovinos, razão porque granjeara aquele nome estranho e esquisito.
Com o Sol já quase a pique o pelotão atingia o tão almejado portal que dava da relva onde se situava o “Curral”. Era uma enorme cancela, feita de paus de cedro, pregados uns nos outros, em rendilhado pouco simétrico, que rodava sobre ganchos de madeira encravados numa grossa parede e fechava-se do lado oposto com uma enorme e desconexa cravelha. Logo a seguir o “Curral”, um fosso rectangular, cavado num canto da relva. Num dos extremos tinha um portal de pedra, que alguém já destapara. Precedia-o um enorme átrio, também cavado na relva e que se ia afunilando até desembocar no próprio “Curral”.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado [1, 2, 3, 4] no «Pico da Vigia».

3 comentários:

MILHAFRE disse...

Mais um excelente apontamento sobre a nossa etnografia.

Parabéns ao distinto autor.

Anónimo disse...

mas ist jà saiu à tempos sao notcias muito velhinhas aja saude
J vieira

Anónimo disse...

Hardlink

Comentarei um pouco no bonito texto
do Sr. Carlos Fagundes:
Sem me lembrar de datas exactas, mas; vamos lá: 1941 até 1944, que me lembre, sempre fui ao Fio duas vezes por ano.

Era lindíssimo! Ao sairmos da Boca da Baleia numa manhã -ainda fria- a primeira coisa a deparar era o latido dos cães, com o balido emitido pelas velhas, carneiros e cordeirinhos, nas descidas do Morro Alto, encostas da Pedrinha e entrada no Rochão de Junco; assim denominado.

Para acompanhar essa sinfonia matutina,o Sol (se havia) dourado reflectia coroando a Natureza.

Respirávamos bem fundo ao inalar o aroma inebriante da frescura amena de tudo quanto o nos rodeava.

O Sr. Fagundes já disse tudo isto e muito mais bem dito. O texto dele, acima, tocou bem fundo dentro em mim.
-Confesso que, em certo Fio, não fui honesto. Era dia de Fio. Regressamos mais cedo do que o usual. Muito antes do fim, com o meu irmão, fomos aliviar as agonias dum prisioneiro que haviamos deixado amarrado com qualquer coisa,num pequeno fundão.

Era um orfão rebelde de (cor da noite escura) que se havia desprendido dos seus familiares. Regressamos ao sítio que deixamos quando iamos p'ró Fio.

Um (cordeirote)preto, trancado (nem me lembro) entre hortências.
-Também não me recordo como foi. Amarramos o (cordeirote) com qualquer coisa. Ficando ele à espera do seu resgate.

A meio do Fio abandonamos o local na ânsea de ir à nossa [presa]
Lá estava o (pretinho) todo enriçado.
Conclusão: O meu irmão, por ser um tal rapaz, trouxe-o às costas; mas antes de o fazer-mos, derivado ao que tinhamos já visto, o nosso [pretinho africano] não tinha marcas nas orelhas, e era isso que causava a nossa ânsea para chegarmos ao local e ver se ele era assinalado.

-Meu bom pai, zangado, e muito honesto, ia forçar-nos a levar o "negrinho" ao mato, se não fosse o meu vizinho Artur Cabeceira que o interferiu dizendo: "oh vizinho Dinis, agora já é tarde; deixa lá os rapazes"

Arremato já: O "pretinho" antes de um ano, dava marradas como um touro. O que compensava era: ser moucho; não tinha chifres. Talvez por ser ainda novo e solteirinho. Não sei...

Denis Correia Almeida
Hamilton,Ont. Canada
Hardlink@aol.com