Tenho pena, tenho mesmo muita pena, que as conquistas, feitas nos últimos 20 anos no ensino público regional, sejam postas de parte de um momento para o outro, de forma sobressaltada, quase como se não houvesse amanhã, e sem qualquer tipo de proteção em relação às ilhas mais pequenas.
Tiro o meu chapéu a todos os professores que, tendo concorrido por três anos para este desterro (na boca de alguns com responsabilidades políticas, nunca na minha), sabendo de antemão quais eram as regras do jogo, cumpriram com profissionalismo, competência e seriedade a “missão” que lhes foi confiada (e para a qual estavam a ser pagos). Aqui, falo daqueles que cumpriram, em simultâneo, com o seu dever de assiduidade. Todos estes ajudaram, em colaboração com outros, a construir uma escola melhor e a conduzir os nossos alunos a taxas de sucesso que em muito nos honram e que, apesar de públicas, não são devidamente divulgadas nos meios de comunicação social da região como se houvesse (será que não há?) umas escolas filhas e outras enteadas do sistema público regional. Nada que me espante, também em relação às ilhas, há umas de primeira, outras de segunda e, até há, as de terceira. Não se pode esquecer que aquilo que faz uma Escola não são as condições físicas, nomeadamente infraestruturas modernas e recursos tecnológicos de última geração, mas, acima de tudo, os recursos humanos envolvidos.
Não consigo resistir a abrir aqui um parêntesis: Por acaso alguém reparou nas imagens, de arquivo, da RTP-Açores sobre a Escola Básica e Secundária das Flores aquando da divulgação dos resultados dos exames nacionais? Este assunto e outros semelhantes, acrescidos ao número de vezes em que a ilha é referida nas notícias regionais apenas porque o “avião cancelou” (esclareço dois pormenores: nem todas as vezes que o avião não vem às Flores é por culpa “das condições atmosféricas no aeroporto de destino” e o avião não “passa” por cá, vem ou não vem) dava uma crónica daquelas!
Voltando ao assunto que hoje me preocupa, tal como os docentes que referi mais acima, existem outros, poucos, que por aqui já davam a cara, ou que, ao longo das últimas duas décadas assumiram que exercer a docência na nossa escola, fixar residência na nossa ilha e aqui constituir família seria o seu projeto de vida. Estes que, até hoje, permaneceram cá, por opção, ponderam seriamente a pertinência de por cá continuar, pois a estabilidade que permitiu um trabalho programado por vários ciclos, e do qual já obtivemos frutos, a renovação dos diferentes órgãos de escola e até a abertura de novos cursos, são algumas das conquistas que, rapidamente, entrarão em retrocesso. Serão poucos para desempenhar muitas funções, a maior parte delas sem qualquer tipo de remuneração, e isso cansa e desgasta. Digo mais, “os velhos da casa”, quando quiserem concorrer, podem dar-se ao luxo de prescindir da dita bonificação, que nos querem dar, porque, com a nossa graduação profissional, assumiremos os topos das listas no concurso.
Uma das alterações do novo regulamento do concurso do pessoal docente, prestes a ser aprovado na ALRAA, terá consequências dramáticas na nossa escola, e prende-se com o facto de o concurso de docentes passar a ser anual. Num primeiro cenário, o docente fica colocado no quadro da EBS das Flores, aceita a colocação e opta por não vir para cá, pede afetação para mais próximo da sua residência, no entanto, a vaga de quadro fica preenchida e, até que ele consiga mudar para o quadro da escola pretendida, será substituído por um docente contratado anualmente, que, sabemos, raramente se mantém em dois anos consecutivos. Esta situação poderá arrastar-se por muitos anos, gerando uma enorme flutuação anual de docentes a assegurar a substituição de “professores-fantasmas” (os que ocupam a vaga de quadro e não necessitam de comparecer na escola de colocação). Outro cenário possível será o professor ficar colocado no quadro da EBS da Flores, aceitar a colocação e optar por vir exercer nesta escola, passado esse ano, terá um bónus na sua graduação profissional para poder concorrer para outra escola, esta escola servirá, assim, de trampolim para voos mais altos.
Definitivamente, estas alterações vão “destruir” um trabalho de duas décadas. Sobre os docentes contratados, uma palavra: na sua grande maioria são profissionais da educação eficientes e cumprem com todas as funções que lhes são atribuídas. Não é isso que está aqui em causa, o que está em causa é a instabilidade que existirá na nossa escola com mais de 60% de docentes contratados anualmente.
Aos colegas que serão abrangidos por esta alteração legislativa e que não terão que cumprir com um ano, ou dois, a que ainda estavam sujeitos para concluir o módulo de três anos, e que, neste momento, contam os dias para sair de cá, duas considerações: oxalá que, ao longo da vossa vida profissional, não passem por nenhuma escola pior do que esta e que o pior sítio onde tenham morado ou venham a morar, na vossa vida, seja na ilha das Flores. Em vinte anos e meio de serviço nesta escola, vi chegar algumas centenas e partirem outras tantas, e garanto-vos que, aqueles que mais choraram à chegada, foram os que mais choraram à partida.
É claro que, idealmente, todos deviam poder trabalhar onde têm a família, onde gostam de estar, ninguém é mais apologista disto do que eu. O que está a acontecer, nesta situação, é que diversas regras instituídas vão mudar, de um momento para o outro, e a sensação que temos é que nos estão a tirar o tapete de debaixo dos pés. Não há aqui normas transitórias. A única regalia oferecida em contrapartida será a bonificação na graduação profissional para concorrer para fora da ilha das Flores. Qual o benefício que daí advirá para a EBS das Flores?
Nas décadas de 80 e 90, do século XX, alguns casais que viviam, trabalhavam e até tinham casa na ilha das Flores, optaram por sair da ilha para garantir, para além das condições de saúde, um ensino de qualidade para os filhos. Destes, pais e filhos, pouquíssimos voltaram. Os que não voltaram fizeram muita falta. Creio bem que voltaremos a assistir a um “êxodo” semelhante nos próximos anos, pois os pais das Flores perceberão que os impostos que pagam não estão a ter o mesmo retorno na educação dos seus filhos que os impostos pagos por contribuintes de algumas das outras ilhas do arquipélago. Esse êxodo está patente no diferencial plasmado nos censos de 2001 e 2011, acrescento, ainda, que o número de habitantes que esta ilha perdeu corresponde à redução do número de alunos na nossa escola, na referida década.
Aos nossos governantes algumas questões: É com medidas destas que pretendem reverter a desertificação das ilhas mais pequenas (as denominadas ilhas de coesão) nomeadamente na fixação de jovens casais e no incentivo à natalidade? Nalgumas ilhas dos Açores, estão a desenvolver-se diversas iniciativas para fixação de jovens qualificados, porque é que, na ilha das Flores, nem sequer se tenta manter aqueles que cá estão ou, no mínimo, fixar novos em igual número?
Aos órgãos máximos desta ilha, àqueles que foram eleitos para nos defender, não têm nada a dizer sobre este assunto? Por uma vez, pelo menos por esta vez, ponham de parte as quezílias partidárias e unam-se em torno de uma causa que, penso e quero acreditar, seja comum a todos nós, pois “quem não se sente, não é filho de boa gente”!
Opinião de Rosa Maria Belo Maciel, natural da ilha das Flores e residente por opção na ilha das Flores; ex-aluna desta escola, ex-presidente do Conselho Executivo da EBS das Flores (de 2007 a 2013), mãe e professora da EBS das Flores.