domingo, 26 de fevereiro de 2017

«Brumas e Escarpas» #121

Leite

Há quem afirme que os pastos da ilha das Flores ainda hoje são dos melhores do mundo. Na primeira metade do século passado essa tese ainda seria mais verdadeira, sobretudo no que às pastagens da Fajã Grande dizia respeito. Situadas em zonas baixas, muitas delas regadas com nascentes de água, por vezes vedadas durante algum tempo ou alternadas com o cultivo do milho, eram de excelente qualidade. A primeira consequência de tudo isto era a excelente qualidade do leite, na altura elemento fundamental na economia da freguesia. Para além duma parte, a maior, que era vendida ou à Cooperativa ou a Martins & Rebelo, a outra parte era fundamental para alimentação diária das famílias. O leite, nas casas dos lavradores, era elemento fundamental do jantar, na altura denominado ceia. O leite bebia-se juntamente ou com pão, às sextas-feiras acabadinho de sair do forno, ou com o bolo do tijolo ou com as papas. Era ainda com o leite que se fabricava o queijo, também presente como conduto em muitas refeições.

A quantidade de vacas leiteiras que cada lavrador possuía é que era relativamente baixa - duas, raramente três e, nalguns casos, apenas uma. As relvas junto da porta eram poucas e poucos eram os homens que tinham tempo ou forças para ir ao leite ao mato todos os dias, dado a longa distância das pastagens e a dificuldade em subir e descer a rocha. Apesar de ordenhadas duas vezes por dia, a produção de leite obtida era relativamente baixa, pois rara era a vaca que em cada ordenha dava mais de dez litros, isto por alturas de dar a cria. O leite era recolhido diretamente da teta da vaca para as latas utilizadas para esse fim, feitas de folha-de-flandres, e fabricadas pelo latoeiro da freguesia, o Antonino de Ti Francisco Inácio. Consta que em tempos mais recuados, o leite era tirado das vacas em cabaças e transportado nas mesmas. As latas de leite quando vinham do mato, ou das terras em que as vacas nos meses de Abril e Maio estavam amarradas à estaca a trilhar as terras onde ia ser semeado o milho, eram transportadas presas e penduradas num pau, uma atrás das costas e outra à frente. Caso fosse necessário transportar três latas, aplicava-se um gancho na parte de trás do pau, permitindo assim prenderem-se duas latas atrás das costas, colocando à frente a mais pesada para contrabalançar. Arte e engenho não faltavam!

Nos dias em que não havia pão ou bolo fresco nem papas, o leite era fervido e deitado ainda a ferver sobre o pão que, nos últimos dias após a cozedura era fervido, sobre o vapor de água. Esta operação era feita num caldeirão com um suporte da madeira no fundo, sobre o qual o pão era colocado. Ao ferver, a água colocada no fundo do caldeirão provocava um vapor que penetrava no pão, amaciando-o. Assim ficava como se fosse acabadinho de sair do forno. Era o pão estufado, sobre o qual se despejava o leite que neste caso também não necessitava de ser fervido.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

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