«Brumas e Escarpas» #23
O canhão da Casa do Espírito Santo de Baixo
Na década de 1950 realizavam-se na Fajã Grande quatro festas de Espírito Santo: uma na Ponta, outra na Cuada e duas na Fajã, uma na Casa de Cima e outra na Casa de Baixo. Estas duas eram as maiores e, entre elas, havia grande rivalidade e até alguma competição, pois cada qual das Casas se esforçava por fazer uma festa melhor e maior do que a outra. A Casa de Cima, da qual meu pai foi sempre mordomo, tinha contra si um senão: é que fazia sempre a festa no próprio domingo do Pentecostes e a de Baixo no domingo seguinte, ou seja no da Trindade, o que obviamente lhe concedia alguma vantagem ou favoritismo em alcançar, ano após ano, o top da grandiosidade festiva.
Interessante, no entanto, é que toda esta rivalidade era salutar e respeitada quer pelos mordomos, quer pelos cabeças de uma e outra das Casas. Basta recordar que as duas coroas em conjunto e acompanhadas pelos cabeças, pelos foliões e por muitos adeptos de ambas as Casas, percorriam em conjunto e lado a lado todas as moradias da Fajã, de um ponta à outra, a fim de em cada ano “atestar” os mordomos de cada uma, ou seja, saber de qual das Casas pretendiam receber a carne bem como a quantidade desejada por altura da festa, até porque havia famílias em ambas as Casas. Tudo isto, porém, era realizado no maior e mais salutar espírito de colaboração e de ajuda mútua.
No entanto era opinião generalizada e quase unânime de que a festa da Casa de Baixo ultrapassava de longe a da Casa de Cima: um cortejo mais solene, as meninas que levavam a coroa mais bem vestidas, pois os pais eram mais ricos, mais fogo, incluindo fogo preso (luxo a que a de Cima não tinha acesso). Mas o que mais engrandecia a festa da Casa de Baixo era um canhão que possuía em exclusividade e que disparava um aparatoso tiro, em pleno arraial a meio da tarde do domingo e pelo qual todos esperaram com ansiedade. Simplesmente espectacular!
A origem do dito cujo era desconhecida, embora se cuidasse que muito provavelmente tivesse, em tempos muito recuados, sido recolhido na costa, onde por vezes vinham parar muitos restos e objectos de navios naufragados. O canhão era uma enorme boca-de-fogo de artilharia que estava montado sobre uma carreta e que consistia basicamente num tubo fechado numa das extremidades e dentro do qual, através da outra extremidade, se ia metendo papelão e outro entulho misturado com alguma pólvora, tudo muito bem batido e calcado com uma soquete, de forma a ficar compacto e simular uma espécie de projéctil, que, depois de pronto, era incendiado através do lume que dentro dele se introduzia por meio de um rastilho que atravessava um pequeno orifício na parte superior da grossa parede do tubo. O canhão era colocado sobre um chafariz que existia junto à empena Sul da Casa. Enquanto se preparava o material, a rua Direita e os caminhos e pátios ao redor da Casa enchiam-se de povo, para apreciar aquele grandioso, espectacular e imponente momento da festa. Uma vez tudo preparado, todos se afastavam, enquanto um homem, o mais “anamudo” e expedito, largava lume ao rastilho, afastando-se logo em grande correia. O rastilho ia ardendo lentamente até fazer chegar o lume ao interior do tubo e incendiar a pólvora ali armazenada, provocando uma enorme explosão, projectando a grande distância aquele entulho transformado em bala e provocando, simultaneamente, um grande estrondo, que alguns segundos depois se repetia em eco na Rocha das Águas.
Era a alegria total! Um espectáculo inesquecível! Um dos momentos mais altos e mais emocionantes da festa.
Conta-se ainda hoje, que num determinado ano alguém, de propósito ou não, no final da operação de batimento do entulho se esqueceu de tirar o soquete do interior do canhão, sendo este projectado juntamente com a bala e encontrado, dias depois, numa terra lá para as bandas do Mimoio, já próximo da Ribeira, o que permitiu, assim, esclarecer as dúvidas que existiam sobre o alcance daquela antiga arma de guerra, reciclada em canhão da festa do Espírito Santo da Casa de Baixo, da Fajã Grande.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».
5 comentários:
nas lajes,mais propriamente na casa do espirito santo da vila também havia uma pequene mas linda em bronze e que foi roubada ...penso que sei onde ela está...a que chamavamos pomposamente a peça da malaca...desconhecendo a origem do nome...não sei se rtrazida pelo antonio maria de freitas lá das bandas do oriente....
nicolau florentina
e nos anos 60 era muito falada esta peça da malaca que se chamava na festa de São Pedro.
As festas do Divino, com as suas variantes locais, vai desde Santo Espirito em Santa Maria, até aos confins da diáspora.
Celebra-se com devoção à bandeira, como no Sul do Brasil, com esmola e musica, como na Califórnia, com um tiro de canhão, como se fazia na Fajã, ou também com as tradicionais touradas, como se faz na Terceira.
É a alma Açoriana que pulsa, pelos quatro cantos do mundo, mostrando aquilo que tem de melhor.
A forma de estar na vida dos Açorianos não é para todos. É para quem, em sintonia com o povo, entra tem espirito de partilha, de solidariedade e de alegria.
Vem isto a propósito da recusa de certa deputação em assistir a uma das mais genuinas tradições dos Açores, as touradas dos bodos, que custumam dar vida e cor às festas do Divino na Terceira, na Graciosa e em S, Jorge.
bonita historia,sempre bom recordar o que continua a ser uma marca historica da nossa terra.
Há muita gente que repudia as touradas, sejam elas de Praça ou nas ruas.Até mesmo os açorianos, particularmente as senhoras.
Pergunta-se porquê? Respondem que, são contra o sofrimento dos animais...
A esses que protestam as touradas, já alguém lhes fez ver que, se esses touros forem retirados das festas ou, pararem de uma vez para sempre, os donos abatem-os logo. Ou pensam que irão ficar no mato a pastar??
As touradas, penso que,não fazem sofrer muito os animais. No entanto, se eles sofrerem um pouco numas corridas que dão num ano,têm o privilégio quase todo o ano, de estarem no mato à solta.
Não será isto, mais importante para esses animais,como para os que se opõem às touradas,viverem mais seis ou sete anos (numas corridas que dão) do que serem abatidos para consumo?
Os Açores não são a Espanha, nem sequer o Continente. Aliás, em Portugal,nas touradas de Praça,os touros, apenas levam uns pares de bandarlhas; depois disso vão para o mato livres.
Nos Açores,na ilha Terceira,os touros estão sempre livres no mato excepto na época das festas; no entanto, nas festas, eles sofrem menos do que muitos lhe parecem. Os animais nos proporcionam umas horas de festa durante um ano; depois são livres. Matar p'ra consumo não será pior? Não me venham cá dizer, que no fim e no cabo eles sempre acabam por morrer. E nós humanos; também não morremos? Valha nos Deus!..E sofremos até morrer?..Esses que se dizem protectores de animais, nestes termos são os mais crueis. Pensem bem...
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