Maria e as Bulas Papais
Maria fora habituada desde tenra idade a ajudar a mãe nas tarefas domésticas e a cuidar dos irmãos mais novos. Maria apesar de criança já trabalhava arduamente e só descansava quando ia à escola onde, com uma inteligência prodigiosa, aprendia tanto ou mais do que as outras meninas. Maria, de mãozinhas roxas de frio, acarretava baldes de água da fonte e esfregava com escova e sabão o chão de madeira carcomida e remendada da sua casa. Maria de pés descalços levava à cabeça cestos cheios de roupa suja, lavava-a na ribeira e estendia-a ao Sol do estio. Maria, de olhos adormecidos porque a noite era curta, levantava-se de madrugada, acendia o lume e varria, limpava e clareava a casa, abrindo-lhes portas e janelas à luz clarificante das madrugadas primaveris. Maria, menina dos pés descalços, corria os campos ao sabor dos ventos e das tempestades. Maria menina, sentia cansaço, fadiga, dor, sofrimento, angústia e achava o Mundo injusto.
Maria tornou-se mulher quando era menina e nem sequer teve tempo para ser criança e para brincar. Maria ficou órfã cedo, muito cedo, cedo demais. E Maria ainda mais mulher se tornou, quando afinal continuava menina porque mais conta tomou dos irmãos, mais lavou, esfregou, cozinhou, varreu, limpou, sacudiu, espanejou, areou, arrumou e até rachou lenha, decidindo, por si própria, que a partir de agora, mesmo continuando a ser menina, seria a senhora e a dona da casa. Maria não se limitava a desempenhar todas as tarefas apenas dentro de portas mas também ajudava nos campos, no semear e acarretar do milho e das batatas, no plantar das couves e das cebolas, no apanhar do trevo e no acarretar da lenha. Maria também fez topadas nos dedos, teve sarampo, tosse, bexigas, defluxo e “godelhões”. Maria meteu estrepes nos pés, fez golpes nos dedos e até caiu e partiu três dentes.
Maria fez tudo o que uma mãe fazia. Maria até fez mais porque fez de senhora, de dona de casa, de filha, de irmã, de amiga e até de pedagoga, porque se esqueceu de que ainda era criança. E ao seu redor já mais alguém lhe lembrou que afinal ela também era criança.
Maria, porque era criança, também ia à catequese e à missa aos domingos, com a cabeça coberta com um mantinho de seda branco. E um dia, do alto do púlpito, Maria ouviu uma coisa estranha! Ouviu anunciar que era pecado grave comer carne às sextas-feiras, mas que ali, na sacristia da igreja, estavam à venda os indultos e as bulas do Santo Padre, os quais autorizavam os cristãos que os comprassem a comer carne em todas as sextas-feiras do ano, excepto nas da Quaresma e nas Têmporas. Quem não as comprasse e comesse carne nesses dias cometia um pecado gravíssimo e sujeitava-se à condenação eterna. Por isso todos, mas mesmo todos os bons cristãos deviam comprar as bulas para se salvarem, agradarem a Deus, cumprindo assim os Mandamentos da Santa Madre Igreja!
Maria ouviu, ouviu muito bem e jamais se esqueceu, mas hesitou. Hesitou simplesmente porque em sua casa não havia nem carne nem dinheiro! Dinheiro? O pouco que havia era todo para a loja da senhora Dias. Carne? De vaca só pelo Espírito Santo e de galinha só na noite de Natal. Seria pela carne de porco? Mas a salgadeira já ia a mais de meio, a linguiça já quase se acabara e já se via o fundo da panela dos torresmos. “E a talhada do toucinho que colocas no caldo de couves com feijão?” – lembrou-lhe uma vizinha. “E a colher de graxa que deitas na sopa ou com que fazes o refogado para o mangão?” – perguntou uma tia. “Tudo isso contava como se fosse carne?” “Oh, se contava!...” “Era carne, carninha, lá isso era.” Por isso Maria, num esforço gigantesco, decidiu juntar algumas moedas para evitar o pecado e a condenação eterna da sua família. Substituiu o petróleo do candeeiro pela graxa de fritar o peixe, já velha e rançosa, na candeia da cozinha, reduziu a colherada do café e aumentou a das favas torradas e da chicória e até, à ceia, mingou o leite nas tigelas. E o milagre aconteceu! Passado um mês poupara o necessário para comprar as bulas. Lavou-se, asseou-se, calçou-se, penteou-se, colocou laços de fita nos cabelos, vestiu a melhor roupita que tinha e lá foi, pé ante pé, tímida e insegura mas prazenteira e sorridente, com destino à casa do Senhor.
Na sacristia da igreja paroquial havia sido montada a tesouraria. Bateu levemente à porta e esta abriu-se. E eis senão quando à sua frente surge um monstro alto, esguio, negro, barrigudo e pançudo, que de rompante, sem ao menos lhe dar os bons dias ou dirigir uma palavra amiga e meiga, lhe saca da mãozinha trémula e fria que, tímida e hesitante, lhe estendia, as quatro moedas esbranquiçadas que ela com tanto sacrifício amealhara, devolvendo-lhe em troca duas folhas de papel, em cujo cimo e ao lado das armas papais de Sua Santidade o papa Pio XII estavam estampadas as imagens de São Pedro e São Paulo, o primeiro de chaves do Céu em riste, anunciando um reino de bondade, de amor e de verdade e o segundo segurando na mão um papiro com as suas cartas anunciadoras da paz, da justiça e da fraternidade.
Maria voltou só, triste, apreensiva e revoltada porque afinal nunca encontrou em sua casa a carne que aqueles abençoados papéis, a que chamavam bulas papais, a autorizavam a comer.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».