segunda-feira, 2 de novembro de 2015

E tendo visto o que vi não vi nada assim

A primeira vez que aterrei nos Açores era Inverno, com nevoeiro. Lembro-me da data, fim de Janeiro de 1995, porque me apaixonara na noite anterior. Em directa, apanhei o primeiro voo de Lisboa para Ponta Delgada.

Trabalhava então na rádio (ia fazer um programa sobre baleias) e o colega micaelense que me esperava, e que não conhecia, é meu amigo até hoje. Esses dias em São Miguel pareceram-me o outro lado do espelho, ou o tecto do mundo, talvez porque fez sempre nevoeiro, talvez por eu estar apaixonada. Mas quando comecei a voltar aos Açores a sensação voltou sempre. Não era o nevoeiro, nem a paixão, é aquele meio do mar, o que fiz dos Açores ou os Açores fizeram de mim.

Um dia escrevo (mais) sobre São Miguel. Alguns anos depois, a minha aterragem na ilha das Flores foi o contrário, eu não estava apaixonada e era Verão. Tinha planeado passar as férias a trabalhar num livro, isolada numa casa de família no Norte de Portugal que afinal na véspera ficou cheia. Então da noite para a manhã comprei um bilhete para o Faial, de onde voei para as Flores. Um dia escrevo (mais) sobre o Faial.

Aterrei na ilha das Flores sem fazer ideia para onde ir. Não planeara nada, achava que vinha para escrever. Apanhei a minha mala no tapete e fui ao balcão da SATA pedir uma sugestão. O homem ao balcão chamava-se António Francisco, era chefe de escala, era um encanto, e tinha uma sugestão: a irmã acabava de abrir uma espécie de turismo rural na outra ponta da ilha. Além disso calhava que a sobrinha viera a Santa Cruz e me podia dar boleia. Assim fácil, como se diz no Brasil.

Lá fomos as duas entre as hortênsias, subindo até ao planalto, depois descendo ao longo daquela encosta verde de onde se despenham cascatas, e o oceano não tem mais fim até à América. E era Agosto: como assim um lugar assim em Agosto, como assim um lugar assim?

A estrada abriu um desvio para a esquerda, entrámos, apareceram as primeiras ruínas. Eu já tinha estado na América, já vira os açorianos espalhados pelo mundo, mas nunca tinha parado para pensar nos vestígios disso nos Açores. Uma aldeia inteira abandonada: chamava-se Cuada.

Teotónia, a anfitriã, trabalhara anos na SATA, tal como o irmão. Carlos, o anfitrião, andara anos na baleia, tal como o cunhado. Ela florentina, ele picoense, já com uma filha adulta (a que me trouxera), largaram uma vida certa para irem comprando ruínas, uma a uma, mantendo a estrutura original da aldeia, caminhos, pastagens, muros. Algumas eram antigas casas de dois pisos, outras apenas palheiros. Coube-me uma de dois pisos, porque era das poucas que já estava pronta. Acho que ainda tentei escrever, qualquer coisa que não era para ser. Ao segundo dia já saía pelos atalhos, descia à Fajãzinha, à Fajã Grande, à Ponta da Fajã, a mergulhar no mar, nas cascatas.

Entre voltas pelo mundo, voltei e voltei, uma das vezes até escrevi quase um livro inteiro lá. E tendo visto o que vi não vi nada assim. É como aquele atum no forno da Teotónia que ainda não aprendi a fazer. Se não for este ano é para o próximo.


Crónica da jornalista Alexandra Lucas Coelho, publicada originalmente na revista «Azorean Spirit - SATA Magazine», número 62.
Saudações florentinas!!

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