O Charabã
A abertura do troço da estrada que liga a ladeira do Pessegueiro aos Terreiros, no início dos anos 50, foi de enorme alegria para os habitantes da Fajã Grande. Não mais percorreriam a pé a difícil e íngreme caminhada até ao cimo da rocha da Fajãzinha, quer nos dias da chegada do [navio] Carvalho [Araújo], quer noutros em que por diversas razões, mormente por doença, tinham que se deslocar a Santa Cruz ou às Lajes.
Foram anos e anos a calcorrear veredas, a subir escarpas, a transpor ribeiras e a saltar grotões, numa árdua e difícil maceração. O percurso iniciava-se no cimo da Assomada, seguindo-se depois pelo Caminho da Missa. Até à Eira da Cuada o trajecto era fácil, mas a descida da ladeira do Biscoito consubstanciava um perigo permanente. Mais difícil ainda era a passagem da Ribeira Grande, sobretudo em dias de grande caudal. Apesar de povoada de passadeiras e possuir de vez em quando uma frágil ponte de madeira, temiam-se caídas à água, escorregadelas e saltos em falso, sobretudo por parte de mulheres e crianças. Os animais, por sua vez, atravessavam-na a nado. A seguir a Fajãzinha, com paragem no Rossio para saborear a água fresca e límpida que ali corria em duas bicas, dia e noite. Aí o percurso estava facilitado. Por fim, a difícil subida da íngreme e sinuosa Rocha dos Bredos.
Assim, toda a população da freguesia desejava ardentemente o fim de tão acerbo suplício. Por isso, a chegada dos empreiteiros e construtores do troço da nova estrada entre o Porto da Fajã e o Pessegueiro e, mais tarde, entre este e os Terreiros foi um desvairamento. Mas a obra demorou anos. Por um lado as limitações e insuficiências da maquinaria disponível, por outro, a dificuldade em abrir brechas naquele alcantil escarpado, abrupto e pétreo que era a rocha da Fajãzinha.
Ao fim de alguns anos, no entanto, para gáudio de todos, a obra concluiu-se e a nova estrada que ligava a Fajã aos Terreiros e, consequentemente, a Fajã a Santa Cruz, foi inaugurada.
Nos dias e meses que se seguiram, porém, o desânimo voltou. Afinal a estrada estava ali, lisa e plana que era um regalo, coberta de asfalto e bagacina, mas de pouco ou nada servia. É que não havia automóveis na Fajã e ninguém dispunha de arte ou engenho e muito menos de dinheiro para comprar um, por isso, uma estrada, na opinião de muitos, tornava-se inútil, até porque fora interdito o uso dos velhos e tradicionais corsões puxados por bovinos.
No entanto, ao correr pela freguesia a notícia de que na Horta, com a moda dos automóveis, se estavam a vender, ao preço da chuva, carroças, charabãs e até coches com animais e tudo, o Zé Maria decidiu-se por ir ao Faial, comprar um charabã. A caranguejola foi recebida com foguetes, filarmónica, água benta e sinos a repicar. O Zé Maria, ao chegar à Praça, tinha mais de meia freguesia à sua espera e saiu do assento do cocheiro em ombros. O povo acotovelava-se para ver de perto e tocar naquela estranha engenhoca que mudaria o seu destino.
O charabã era um veículo grande, de quatro rodas com raios de ferro, sobre as quais assentava uma estrutura de madeira, à qual se prendiam quatro varões que sustentavam o tejadilho, um toldo de lona esverdeada, já muito desbotado pelo sol e pela chuva. Os assentos eram quatro bancos, dois laterais e outros dois transversais, um logo atrás do assento do cocheiro e outro na retaguarda. Puxavam-no três muares devidamente identificados: a Mulata à esquerda, a Moirata ao centro e o Lopes na direita.
O resto da tarde foi de regabofe com uma viagem ao Porto para convidados e a garotada toda a correr atrás do charabã. De seguida, com o balcão a tresandar a traçado e aguardente a servir de secretária, começaram as inscrições e as reservas. Um sucesso!
No dia seguinte às seis da manhã, o charabã partia na sua viagem inaugural. O Zé Maria, envergando o chicote e sentando a seu lado a Chica, que decidiu fechar o café naquele dia, já que não trocava aquela primeira viagem por nada deste mundo, deu o sinal de partida, proferindo a senha de ignição: - Salta mula lá p’ra diante mula!... - E batendo ao de leve nos três muares, iniciou a viagem com destino à Vila, com dezenas de mirones a ver aquela primeira partida da nova coqueluche dos transportes fajãgrandenses.
O charabã do Zé Maria, no entanto, teve uma duração efémera. Os muares eram velhos e cansados e a própria carripana, também já bastante gasta e alquebrada, acabou por desfazer-se por completo, pouco tempo depois. O Zé Maria ainda vendeu o Lopes e a Moirata para as Lajes e partiu para a América.
Carlos Fagundes
Este artigo foi anteriormente publicado no «Pico da Vigia», o blogue pessoal do novo colaborador do «Fórum ilha das Flores», Carlos Fagundes, que (periodicamente) nos irá trazer algumas estórias acontecidas há bastante tempo na Fajã Grande.