João Lizandro e a Estrada da Ponta da Fajã
No lugar da Ponta da Fajã vivia antigamente um homem já de idade avançada, chamado João Lizandro. Casado e pai de um filho, apesar de constar pela freguesia de que teria muito dinheiro, vivia no entanto com aspecto de pobre. Mas tinha bom coração o João Lizandro e era tão religioso que até mandou construir, a expensas suas, uma pequenina capela, em madeira, bem junto à Rocha e dedicada à Senhora de Fátima. Cuidava o devoto senhor, que se os que subiam a Rocha invocassem a protecção da Virgem, haviam de ser livres de quedas, derrocadas e outros perigos, que ali eram frequentes. O João Lizandro vestia sempre a mesma roupa, andava habitualmente descalço e com a barba por fazer, locomovendo-se amparado a um enorme e grosso bordão, apesar de o fazer ainda com bastante agilidade. Mas o que mais caracterizava esta enigmática figura era o interesse que colocava continuamente na defesa dos interesses da localidade onde vivia, ou seja, da Ponta. Esta enorme vontade de defender a sua terra de tudo e de todos, de lutar pelo seu progresso e pelo bem-estar da sua população, levou-o, segundo se dizia, a iniciar uma série de troca de correspondência com Salazar. Pelos vistos o chefe do Governo português da altura, possivelmente através de algum secretário, respondia-lhe e João Lizandro foi adquirindo aos poucos a fama e o estatuto de defensor-mor da dignidade, da verdade e da honestidade, junto do Presidente do Conselho. Uma espécie de bastião na luta contra a corrupção, pois sempre que necessário, por este ou por aquele motivo, escrevia a Salazar.
Quando o almirante Américo Tomás, no início da década de 1960, visitou a ilha das Flores, deslocou-se também à Fajã Grande, acompanhado do ministro das Obras Públicas, engenheiro Arantes Oliveira, do Governador Civil da Horta, Freitas Pimentel e de todas as autoridades políticas, militares e religiosas da ilha. Acompanhado de toda esta comitiva, Sua Excelência apeou-se à Praça, onde o esperava muito povo. Desceu a rua Direita, toda engalanada e com os sinos a repicar, a Senhora da Saúde a tocar, abanando a uns e sorrindo a outros, terminando o percurso pedestre em frente ao portão do Gil, junto à Casa do Espírito Santo de Baixo. Foi então que João Lizandro, descalço e com a roupinha toda rota e remendada, de bordão na mão e casaco ao ombro, furou a segurança e aproximou-se do mais alto magistrado da nação. Alguns elementos da guarda-fiscal ainda tentaram impedi-lo, mas sem sucesso, dado que Américo Tomás, talvez impressionado pelo seu aspecto original e genuinamente popular, já o chamara para junto a si, cumprimentando-o. João Lizandro estendeu a mão suja e calejada ao presidente e, sem demoras, apontando para Rocha da Ponta, solicitou-lhe:
- O sinhô tá a vê aquela rocha. Pois eu e mais de cem pessoas moramos ali debaixo daquela desgraça e nam temos sequer ua estradinha pra lá chegar, temos que vir a pé prá qui pa depois apanhá um carre prá vila ou prás lajes. E os doentes tem que sê carregados às costas. O sinhô, por alma dos seus, mande fazer uma estradinha prá gente da Ponta.
Américo Tomás ouviu atentamente, mantendo a mão do velho Lizandro apertada pela sua e, quando ele terminou, olhou de soslaio para o ministro Arantes Oliveira que logo fez um gesto assertivo com a cabeça, enquanto Freitas Pimentel, furioso, batia com o pé no chão, dizendo:
- Querem uma estrada?! Então já não têm aqui uma, bem nova e bem boa!?
O Presidente entrou para o automóvel e seguiu até ao Porto, onde parou, junto ao farol, para apreciar o mar, a rocha, as quedas de água e o verde dos socalcos e andurriais. De seguida partiu para as Lajes.
Passado algum tempo foi construída a estrada para a Ponta. Se foi ou não devido ao pedido do João Lizandro nunca se saberá. Mas o facto é que na altura, na freguesia, todos acreditavam que a estrada se construiu graças ao pedido que João Lizando fizera ao senhor Presidente da República, quando ele visitou a Fajã.
Carlos Fagundes