Hoje
Passaram-se muitos anos desde a última vez que visitei a freguesia onde nasci. Hoje (dia em que escrevo este texto) foi possível regressar à Fajã e voltar a ver, conjuntamente com muitos outros lugares que carregam um sem número de recordações, lá bem no alto, o Pico da Vigia, dos meus tempos idos, mas ainda hoje a manter-se como que coroado com a pequenina vigia da baleia e observar o seu companheiro de sempre, a ele paralelo na direcção do mar, o Outeiro, encimado com uma enorme e altiva cruz, cuja origem se desconhece porque perdida no tempo. Por entre um e outro continuam a desfilar, destemida e ousadamente, as pequeninas mas sorridentes casas da Assomada, umas brancas de neve, outras velhas, escuras e abandonadas e outras até a desmoronarem-se de tão antigas e desertificadas. Mas muitas das que por ali proliferam são novas, estranhas, desconhecidas, a substituir os antigos milheirais, das outrora pequenas mas férteis terras, circundantes àquela artéria. Outras, mas mesmo muitas outras, lá para baixo, para o Porto, para o Estaleiro e para o Calhau Miúdo, a transformarem em bairros os amplos e produtivos serrados de outrora ou simplesmente a entrelaçarem-se por entre as velhinhas moradias da Tronqueira e da Via de Água, todas muito bem demarcadas e delineadas mas a confundirem sentimentos e a desfazerem memórias. A Fajã das sete ruas com duas casas no Porto e uma no Alagoeiro, esfumou-se no tempo, desapareceu. E hoje, ao lado das casas de ontem, dos obsoletos e decrépitos palheiros, agora recuperados e transformados em cafés e restaurantes e das casas velhas ou de arrumos recicladas e a abarrotar de uma graciosidade estranha e de um tradicionalismo inexaurível, surge uma gama de novas e estranhas moradias. E é verdade que, lá ao fundo, o mar permanece azulado e roufenho mas o baixio que o rodeia, outrora negro e empedernido a abarrotar de lapas e sargaços, agora surge menos agreste, com os seus caneiros, baías e portos transformados em piscinas naturais, quais redutos de água salgada, rodeada de muralhas de cimento que foram aniquilando a sua pertinente e intrínseca negrura e desfazendo o seu brilho lávico e basáltico. Campos de milho de ontem, estão hoje a abarrotar de cizânias e junquilho, courelas de batata-doce atulhadas de feitos e heras, pastagens transformadas em campos de cana roca e incensos esguios. Canadas obstruídas por ervas e silvados, veredas desfeitas e a abarrotar de pedregulhos soltos, caminhos tapados com calhaus e penhascos e descansadouros perdidos na memória dos mortais. Até as altas, rústicas e estranhamente arquitectadas paredes da ladeira do Batel, a própria laje da Silveirinha e o Calhau das Feiticeiras se transformaram em mitos, desfeitos pelo tempo e calcificados pela memória de muitos mas que, apesar de tudo, ainda espreitam teimosamente um ténue regresso à memória dos vindouros. Já não se ouve o tilintar das campainhas das vacas, o chiar dos carros de bois ou o arrastar das “alabaças” dos “corsões” sobre as lajes calejadas dos caminhos, apesar de ainda haver cangas e “tamoeiros” mas a ornamentar as paredes dos snack-bares. Já não há “vergas” na Rocha, nem moinhos impulsionados pela força jactante das águas, já não se pescam vejas, nem enchovas ou bicudas na ponta do Cais, mas no Porto Velho e na Coalheira ainda há respingos de salmoura e vagas revoltas com os ventos do oeste. Até na Igreja paroquial, Santa Teresinha foi retirada do altar-mor e colocada lá ao fundo, o Coração de Jesus mudou de altar e a Senhora do Carmo foi engavetada na sacristia. Nas ruas apenas um ou outro rosto de outrora. A Fajã de hoje, ora desfeita, ora alterada, ora teimando em manter-se nas roupagens e costumes de antanho mas a querer banhar-se nas exigências duma modernidade cerceada pelos imperativos do isolamento, da desertificação e do abandono.
Talvez por isso mesmo e juntamente com o Pico da Vigia e o com Outeiro, ainda lá, mais no alto, esteja a Rocha, altiva, imponente e imutável, a ufanar-se com a Fonte Vermelha e a pavonear-se da Furna do Peito, paramentada de verde e negro, com inúmeras quedas de água a banharem-lhe penhascos e ravinas e a irradiar uma beleza, uma imponência e uma sublimidade contagiantes. Também ainda lá está o mar com o Monchique bem escarrapachado no meio, com a Baixa Rasa ao lado, a Poça das Salemas a abarrotar de lapas e caranguejos e o Rolo à espera da chegada do sargaço. Também ainda há torresmos, morcela, linguiça e inhames, mas confesso a minha tamanha estupefacção por estranhamente me ter banqueteado com eles, ali, no abandonado palheiro do João Fragueiro, em frente à Casa do Espírito Santo de Baixo, onde funcionava a escola primária e que servia de latrina a quantos frequentaram aquela escola na década de cinquenta.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».