sábado, 17 de dezembro de 2011

«Brumas e Escarpas» #32

Noite de Natal (parte 1)

A noite estava fria e escura. Das encostas do Pico da Vigia e do Outeiro desciam sibilos de vento, míticos e sonantes, que se diluíam sobre os telhados das velhas casas da Fajã, perdendo-se na imensidade escura do Oceano. No ar pairava um cheiro a canela e um perfume de hortelã e das janelas semicerradas das pequenas habitações saía uma luz trémula, baça e insegura. As ruas eram um deserto escuro e quase terrificante.

Na torre da igreja, os sinos haviam, há pouco, anunciado a Missa do Galo. Esperavam-se, agora, as três badaladas, indicadoras da aproximação da hora. E estas não se fizeram esperar. Logo que soaram na velha torre, sobrepondo-se aos sibilos angustiantes do vento e ao bramido roufenho do mar, como que misteriosamente, de todas as portas, começaram a sair vultos negros, inseguros e indefinidos. Enrolados em roupas grossas, tapavam a cabeça com mantas ou bonés e balouçavam-se no escuro. Uns, seguiam em pequenos ranchos, transportando lanternas de vidro tisnado e luz amarelada, baça e trémula. Outros seguiam só, guiando-se no escuro, amparados a bordões e às paredes e muros dos pátios. Sincronamente, fechavam as portas e encaminhavam-se, para a igreja, situada no centro da freguesia.

Eu era um deles! Dos mais pequenos, dos mais hesitantes e medrosos...

Era o primeiro Natal em que me fora reconhecido o direito de ir à Missa do Galo, o que, para mim, significava a certeza de já ser um homenzinho. Por isso me preparara dignamente para tal evento. A roupa, apesar de pobre, era a melhor que tinha. Além disso, contrariamente ao habitual, ia calçado, o que me dava um ar de maior dignidade e me conferia uma importância desusada. O silêncio escuro da noite, apenas entrecortado pelo contínuo silvar do vento e pelo bater emaranhado dos sapatos nas pedras da calçada, porém, assustava-me.

Saíramos juntos de casa: meu pai, meus irmãos e eu. Porém, ao passarmos frente ao botequim do Aires, onde os homens, habitualmente passavam os serões e a cujo balcão alguns já estavam encostados, meu pai, assumidamente arredado das cerimónias religiosas e das celebrações litúrgicas, despediu-se de nós e ficou por ali, enquanto seguíamos num grupo que, à medida que se aproximava da igreja, se avolumava e quase transformava em romaria.

Aquela noite, não apenas em minha casa, mas também em todas as da freguesia, fora diferente. De manhã, minha irmã matou um galo, depenou-o e fez-lhe vinha-d’alhos. A casa foi lavada de ponta a ponta e, de tarde, fez-se o arroz doce polvilhado com canela, cozeu-se um caldeirão de inhames e guisou-se o galo. À hora da ceia, sentámo-nos à mesa. Tudo era diferente, naquela noite. Sobre a toalha esbranquiçada, tilintavam pratos e talheres, contrariamente à habitual tigela de sopas de pão de milho e leite. Aos inhames, muito quentinhos, a fumegar, juntava-se, em cada prato, um pedaço do galo, acompanhado dum molho aromático, muito bem temperado. Depois o arroz doce, muito amarelado, salpicado com canela. E logo um prato a cada um! Cada qual poderia saboreá-lo, ali, inteirinho, ou então, comer apenas metade e guardar o resto para o dia seguinte.

Ao lado, num dos cantos da sala, estendia-se um grande presépio. Para além da gruta, com as figurinhas, possuía casas, caminhos, ribeiras, lagos, montes, ovelhas, pastores, uma igreja, um anjo e uma estrela grande e brilhante. Num dos cantos o sumptuoso palácio de Herodes e no outro a humilde casa de Barbearias, onde São José fora pedir lume, para fazer a fogueira e aquecer a água para lavar o Menino. Fora montado alguns dias antes, com a colaboração das tias da Fontinha, depois de muita hesitação e discussão:

- Quem está de luto, ainda por cima, pela mãe, não faz presépio! – opinavam os mais conservadores.

- São crianças, ninguém leva a mal. E um presépio não é nenhuma festa. – decretavam os mais tolerantes.

Foi esta a opinião que prevaleceu e o presépio fez-se, mas sem a motivação habitual, pois era certo e sabido que o Menino Jesus, este ano, não traria nada, embora eu não percebesse bem porquê...


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

1 comentário:

Anónimo disse...

A noite e dia de Natal, era a noite mais feliz do ano para mim quando eu era criança. Levantava-me durante a noite para ver se o Menino Jesus já tinha deixado os presentes. A maioria das vezes era apenas uns figos passados com uns rebuçados. Um ano tive a sorte de ter sido presenteada com um colar e um tachinho. Que alegria! Fiquei sentada ao lado do presépio até amanhacer. Demanha cede, lá vou eu, a minha irmã e o meu primo, a casa da nossa avó mostrar o que o Menino Jesus nos tinha trazido.
Foi o Natal mais feliz da minha infância.