«Preto no Branco» #39
«Faces Ocultas; as de lá e as de cá»
A gente sabe mas ninguém entende
É o tema nacional da actualidade.
A cada passo, um episódio do Processo Face Oculta, novelo com mais pontas que meadas e que enriça Portugal de fio a pavio. Em cada canto está uma aranha e outras tantas teias - a somar à ingovernabilidade iminente e à mais profunda crise sócio-económica das últimas décadas, esta sucata, só(!) a ponta do icebergue, no dizer de vários, vem confirmar o que há muito antevíamos - caminhamos para a ruptura.
Nos Açores, e nas Flores, em particular, enquanto «por lá» o Face Oculta vai enchendo jornais, telejornais e despoletando múltiplos debates, «por cá» vive-se como se a coisa nos fosse alheia, caindo-se, amiúde, na tentação fácil de adjectivar o que se passa «em Lisboa», como se a Capital fosse uma cova de ladrões e a mais recôndita das ilhas [fosse] um atol alheio aos esquemas da perversão do Sistema. Como se a clamada urgência popular na limpeza que se impõe «por lá», fosse uma necessidade estranha à realidade «de cá». Não é. O que acontece é que é muito mais fácil abrir a boca sobre os escândalos que ninguém toma por seus, ou dos seus vizinhos, no lugar de levantar o dedo sobre o que vê, todos os dias, mesmo debaixo do nariz.
Não há, pois, destrinça possível ente o «lá» e o «cá». As únicas diferenças, a existirem, estão na escala; se «lá» é um Rolex, «cá» há-de ser um Sharp; se «lá» é uma nomeação para chorudo lugar em empresa do sector público estatal, «cá» há-de ser para o sector público regional ou municipal; se «lá» são mil patacos, «cá» hão-de ser dez... e por aí fora. O que faz o «lá» é o somatório de todos os «cá», seja nas Flores ou em Freixo de Espada à Cinta, na Horta ou na Nazaré, em Angra ou em Vila Real de Santo António, em Ponta Delgada ou na Figueira da Foz... e por aí fora, até Lisboa.
Dito isto, importava esclarecer, entre várias outras, certas «coisas de cá», tais como:
- Por que é que se gastam milhões nas Flores, na construção de uma nova Central Termoeléctrica? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que existem empresas públicas municipais e para que servem? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que um Município das Flores com pouco mais de mil habitantes emprega, directa e precariamente, cerca de 150 trabalhadores? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que, regra geral, os funcionários públicos dos serviços regionais tendem a integrar ou acabam por apoiar listas partidárias afectas à cor do partido do Governo Regional, ao passo que [os funcionários] das autarquias locais optam pela cor do partido instalado na Edilidade? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que por cada Secretaria Regional existe uma Delegação local que, na maioria dos casos, não serve para nada? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que a pedreira da Ribeira da Cruz, e outras, ainda não foram mandadas encerrar? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que com tantos instrumentos de urbanismo e ordenamento do território, a ilha [das Flores] apresenta casos de construção nova, muitas vezes promovida por entidades públicas, que são uma vergonha? A gente sabe, mas ninguém percebe;
- Por que é que o Serviço Regional de Saúde, nas Flores, é uma autêntica agência de viagens? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que há tanta escassez de mão-de-obra na ilha e a Segurança Social local está a rebentar pelas costuras? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que nunca tendo havido tantas instituições de solidariedade social, programas públicos de previdência e recursos afectos, aumentam os casos de carência gritante? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que existem múltiplas forças de segurança na ilha, cada uma com a sua esquadra ou posto, meios e efectivos? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que há habitantes na ilha que já temem pela sua segurança e haveres? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que a Fábrica dos Lacticínios não é auto-suficiente? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que aos variados subsídios de apoio à lavoura e às pescas, não correspondem efectivas melhorias na qualidade dos sectores? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que a Associação Agrícola tem uma sede e uma sucursal, esta dotada com as mesmas valências da primeira, mais talho? A gente sabe, mas ninguém entende;
- Por que é que não nos fiamos nas declarações ao Fisco daqueles que não são trabalhadores por conta de outrem? A gente sabe, mas ninguém entende...
Preto no Branco,
Ricardo Alves Gomes