«Miscelânea da Saudade» #12
Um romeiro apaixonado
Consta a estória verbal que, em tempos muito antigos, quando os romeiros faziam o percurso duma semana de sacrifício a pé, como hoje, muitos deles iam descalços, ou então com alpercatas feitas de borracha de rodas usadas de viaturas, ou sandálias feitas de corda de espadana conhecido por 'tabúa'* nas freguesias nortenhas da ilha de São Miguel. Depois desta dolorosa penitência, ao regressarem a casa, alguns ficariam sob tratamento de remédios caseiros e sem poderem trabalhar por alguns dias.
É preciso não esquecer que a "guerra ao pé descalço nos Açores", principalmente em Ponta Delgada, deu-se por volta do começo de 1950 do século passado. Em São Miguel, dentro da cidade, eu ainda cheguei a ver alguns mestres irem para o trabalho descalços. Na mesma cidade, fui testemunha de quando se iniciou a guerra ao pé descalço, assim denominada pela sapataria Ele e Ela, em Ponta Delgada. Esta campanha foi seguida por vários estabelecimentos do mesmo género.
Gradualmente, mas com certa ligeireza, o preço do calçado passou a ser tão acessível que poucos foram os que ficaram sem comprar sapatos; 'tudo' passou a ter sapatos. Viam-se alguns caminhantes com os sapatos dependurados aos ombros, um p'rá frente e o outro p'ra trás das costas. Isto, derivado ao esfolamento dos pés. Sabemos que o pé que anda descalço, geralmente é muito mais largo do que o que anda calçado, fazendo com que os calcanhares e o dedo mindinho do pé sofram pelo aperto.
Lembro-me de ouvir que muitos compraram sapatos e continuaram a andar descalços. O estreador dos sapatos, se andasse com eles conforme a qualidade do pé do freguês, mais lhe valia andar descalço do que andar no outro dia com os dedos dos pés empanados. Eu vi alguns estreadores de sapatos que no fim do dia regressavam a casa como quem vinha duma procissão com os sapatos à tira-cola e a manquejar. Também fui um dos tais que comprei um par de sapatos para ir à primeira Festa do Santo Cristo. Isto em Maio de 1951, tinha eu 14 anos e havia chegado das Flores há um mês. Também voltei das festas com os sapatos às costas e a manquejar. Eram sapatos de pelica muito dura que deixava muitos aleijados. Os melhores sapatos eram os de lona, também reles, mas melhores do que andar de pés no chão.
Vamos agora ao couro da vaca-fria, o dito caso dos romeiros: como já devem saber, a pernoitada dos irmãos romeiros nas freguesias supostas, inicia-se com o tocar da campainha do mestre dos romeiros, solicitando aos residentes da terra, acomodação para os irmãos. Nunca fui romeiro, mas sei disso. Uns, acomodavam um romeiro; outros, dois; e por vezes, três; e assim sucessivamente.
Em certa casa entrou apenas um romeiro, porque a família e a casa eram pequenas. O romeiro, um tal moçetão descalço, solteiro e forte, de 24 anos. Era muito vaidoso da sua força. A filha do casal, com 22 anos, muito linda, solteira, viva e fresca, tinha um desembaraço de admirar. Pois tinha sido ela mesmo quem o resgatou do rancho dos romeiros ao ouvir a campainha. Já dentro de casa, seguiu-se a introdução dos pais ao penitente romeiro. Nessa tardinha de recepção acolhedora, foi ela a anfitriã do hóspede religioso, enquanto os pais lhe preparavam a cama, ela foi p'rá cozinha.
À chamada dela, o rapazão entra na cozinha. Já o caldo de couves se encontrava a fumegar sobre a mesa. Enquanto ele saboreava o quentinho caldo, a jovem trouxe-lhe uma selha com água bem quente para ele ir adoçando os pés, enquanto comia as couves. O nosso romeiro, apaixonadíssimo pela donzela e, talvez, ela por ele; quem sabe?. De repente, mete os pés na água bem quente, enquanto ela grita: "não! não!... espera; eu esqueci de por água fria. Trago-a já para destemperar essa que estava já quase a ferver!", disse ela. "Deixa lá mulher; eu sou forte; quanto mais quente melhor". "Então, a água não estava bastante quente?", pergunta ela. "Sim, estava quente, mas como sou rijo, gosto da água bem quente!", dizendo isto para impressionar a moça, quando ela já trazia de novo a chaleira de ferro com a água aos pulos a ferver. Avisa ela: "desvie os pés, olhe que esta agora está mesmo aos pulos!. "Não faz mal! Deite a água quente p'ra cima dos pés; eu aguento tudo isso e muito mais!". "Credo Pai do Céu!!! Que homem forte é este!", exclamou ela ao despejar a chaleira de água a ferver sobre os pés dele. Nesta altura que a água a ferver lhe cai sobre os pés, respinga-lhe duas lágrimas dos olhos, para acompanhar a agonia disfarçada num sorriso forçado que ele mostrou à rapariga. Os olhares encontraram-se. Se nessa altura, alguém entrasse na cozinha e visse tal cenário, diria que ele estava a desfazer-se em lágrimas de amor por ela.
Pronto! Ceia terminada; pés escaldados, assim partiu o romeiro p'rá cama. Ela não queria acreditar no que os seus olhos haviam visto. Ao pegar na selha para despejar a água, com uma mão abafou um grito, por ver algo no fundo da selha. De olhos muito arregalados, encontra as dez unhas dos pés do convidado rapazão.
Mas ele era um moço forte; lá isso era.
* - as sandálias de corda de tabúa usavam-se nos tempos muito antigos.
Denis Correia Almeida
Hamilton, Ontário, Canadá
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