Novembro
Na Fajã Grande, na década de 1950, Novembro era um mês estranho, esconso, mítico, repleto de ritos arrepiantes, de emoções tenebrosas e de celebrações fúnebres. É que, para além de sob o ponto vista meteorológico ser um mês de mau tempo, de dias invernosos, curtos e escuros, Novembro era o mês da devoção e do culto das almas do purgatório, o mês durante o qual, quer com missas e outras celebrações na igreja, quer com preces e orações em casa, quer ainda com romagens e visitas ao cemitério, devíamos sufragar as almas dos nossos parentes falecidos e pedir pelas almas do purgatório, em geral, “principalmente as mais abandonadas e que mais sofriam ou não tivessem quem intercedesse por elas”.
O mês iniciava-se com a festa de todos os Santos, celebrada exactamente no dia um, e que, mais do que festejar os eleitos que já “gozavam a santa glória” de Deus, se destinava à preparação, limpeza e ornamentação do cemitério e das sepulturas dos nossos antepassados que haviam falecido nos últimos anos, caso ainda não tivessem sido abertas. Mas o que mais caracterizava a festa dos Santos, era o facto de ser nesse dia que se realizava a “derrama” das almas. Sob as ordens e orientação da “Mordoma das Almas”, cargo desempenhado durante muitos anos por minha avó materna, um grupo de homens corriam todas as casa da freguesia recolhendo as ofertas de milho para as almas, que iam transportando em cestos e sacos para casa da mordoma. Aqui juntavam-se as mulheres e, formando uma enorme roda à volta das maçarocas que eram recolhidas já descascadas e que formavam um grande monte no meio da sala, iam-nas debulhando e enchendo os grãos em sacas de serapilheira, devidamente pesadas, a fim de se venderem mais tarde. O dinheiro resultante dessa venda era destinado a celebrar missas pelas almas do purgatório. Esta operação implicava uma grande movimentação de gentes e recolhia grandes quantidades de milho. Quem não o tivesse ou, se assim o entendesse, oferecia um valor equivalente em dinheiro.
Por sua vez, o dia seguinte, chamado dia de Finados ou dos Defuntos, era um dia de luto, de missas, de orações e de visitas ao cemitério. Nesse dia celebravam-se durante a manhã três missas, intercaladas com visitas ao cemitério, durante as quais o pároco paramentado de negro, por entre orações, súplicas, rezas e pregações ia recordando os três “Novíssimos” que constavam do catecismo e que eram os seguintes: Morte, Juízo e Inferno ou Paraíso. Era também durante este dia que, segundo se dizia, se comemorava a morte e o enterro do “Velho Laranjinho”, uma figura mítica e lendária que morria todos os anos e que simbolizava todos os mortos da freguesia. Era montado um catafalco no cruzeiro da igreja, à volta do qual se celebravam os ritos fúnebres como se de um funeral de verdade se tratasse. Os sinos dobravam a finados de manhã, ao meio-dia, à tarde e à noite, convidando ao silêncio, à oração pelas almas e à reflexão sobre a nossa própria morte, que havia de chegar um dia.
Durante os restantes dias do mês, com excepção dos domingos, realizava-se, na igreja paroquial, a devoção ou novena das almas. Já noite escura a igreja enchia-se de gente como se de domingo se tratasse e era celebrada missa, geralmente a chamada pelo Missal Romano “missa quotidiana dos defuntos”. A igreja permanecia propositadamente escurecida, sendo apenas iluminada pelas velas do altar-mor e por outras seis encravadas em outros tantos gigantescos castiçais dourados, colocados ao redor de um enorme tapete preto, debruado a amarelo e com uma enorme cruz a meio, estendido bem no centro do cruzeiro, logo a seguir à capela-mor. A escuridão do templo, por um lado, convidava e proporcionava aos crentes um ambiente mais propício à oração e à reflexão sobre o mistério da sua própria morte e, por outro, encenava uma espécie de enquadramento daquilo porque todos, sem distinção, já tinham passado – a lembrança da morte de algum familiar. De seguida o pároco envergando a capa de asperges preta e barrete de três quinas, colocava-se estrategicamente à cabeceira do tapete e, voltado para o povo, rezava um responso por cada um dos agregados familiares da Fajã, agrupados ao longo dos vários dias, desde o cimo da Assomada e até ao fim Via d’Água. Como as famílias obviamente eram muitas mais do que os dias do mês, o pároco agrupava em cada dia um número razoável e adequado de agregados familiares, sendo que, no entanto, rezava separadamente os responsos, ou seja um pelos defuntos de cada família. Entre a reza de cada responso, o pároco pegando no hissope encharcava-o na caldeirinha da água benta que o sacristão lhe apresentava, dava uma volta ao tapete e aspergia-o em cruzes sucessivas dos quatro lados, enquanto os sinos dobravam a finados.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».