quarta-feira, 28 de março de 2012

«Brumas e Escarpas» #38

Os abafadores dos bules de café

Se éramos nós crianças que, noutros tempos, com a nossa imaginação e criatividade construíamos os nossos brinquedos, valha a verdade que na Fajã Grande, também pela mesma altura, eram os adultos, com não menos imaginação e outra tanta ou mais criatividade, que construíam grande parte dos objectos necessários ao seu trabalho e às actividades e lides que o seu quotidiano comportava. Entre os muitos e variados objectos de fabrico caseiro ou artesanal estavam os abafadores dos bules de café que existiam em todas os lares e que eram fabricados geralmente pela dona da casa, sendo que a maior parte revelava grande imaginação e assumida criatividade.

Como é por demais sabido, na Fajã Grande o café era, muito provavelmente, a bebida mais consumida. Bebia-se o apetitoso e aromático líquido, feito com uma mistura de favas, chicória e café puro, geralmente misturado com um pouquinho de leite. As favas eram cultivadas por cada um e depois de secas e torradas eram misturadas à chicória e aos grãos de café, comprado geralmente em menor quantidade do que a chicória porque esta era mais barata. Todos estes ingredientes eram misturados e moídos no moinho de café que existia em quase todas as casas, aparafusado numa das paredes da cozinha.

Bebia-se muito café ao longo do dia: ao levantar, pela madrugada, ao longo da manhã, ao jantar, de tarde e por vezes até à ceia ou à noite antes de ir para a cama. Muitas vezes, sobretudo quando se ceifava feitos, lavrava os campos ou sachava o milho, as crianças ou as mulheres iam aos campos levar café acompanhado de pão ou bolo com queijo aos homens que ali realizavam aquelas árduas e cansativas tarefas.

Assim e devido às dificuldades e demoras no acender do lume e ferver a água, muitas vezes com garranchos verdes e alagados, era impossível fazer café a cada hora e a cada momento. Por isso, tornava-se imperioso e necessário que em cada casa houvesse permanentemente café quentinho, mas sem ser feito na altura, o que apenas se conseguia com recurso aos “abafadores”, geralmente feitos pelas mulheres.

O abafador, que mantinha o café quente por muitas horas, era feito com dois pedaços velhos de fazenda da mais grossa possível, geralmente retalhos de casacos ou “camurças” já não usados e que eram cosidos de maneira a formar uma espécie de saco, sendo que a extremidade oposta à da abertura ou era oval ou cóncava, conferindo assim uma ar de maior graciosidade ao abafador que ficaria exposto diariamente em cima da mesa da cozinha ou da “amassaria”, com o objectivo não só de manter o café quente mas também de agradar aos olhares das visitas, sempre curiosas e sempre a meter o nariz em tudo. Depois de feito o simulado saco, por vezes até com bordados laterais, fazia-se um outro também de pano velho e preferencialmente de lã, que serviria de forro e ao qual se dava a forma do primeiro mas que era bastante menor, tendo mais ou menos o tamanho de um bule de café. De seguida eram metidos um no outro e colocava-se no espaço que restava entre ambos, devido à sua diferença de tamanho, uma enorme quantidade de chumaço feito de lã e trapos velhos de forma que o interior ficasse bem cheio como se fosse uma almofada de sofá. Cosidas a boca de um saco à do outro, o abafador ficava completo e pronto a ser colocado sobre o bule, cobrindo-o na totalidade e protegendo-o do frio. Os abafadores adquiriam formas diversas e diversificadas. Uns, os formados por sacos convexos, adquiriam a forma de um semicírculo, enquanto os outros, os de forma convexa, se assemelhavam a uma fralda de criança estendida na corda, a secar. Havia, no entanto, abafadores mais sofisticados e muito mais perfeitos sob o ponto de vista estético, não apenas pela melhor qualidade do tecido mas também pela excelência do chumaço e, sobretudo, pelo formato diferente que lhe davam, sendo que os havia até em forma de galo sentado, com bico, crista e tudo.

O uso dos abafadores diminuiu bastante, nos finais da década de 1950, com a chegada à Fajã das garrafas termos ou “garrafas de calor”, como se dizia, inventadas no longínquo ano de 1892 pelo escocês James Dewar.

Mas creio que actualmente os abafadores terão desaparecido por completo por culpa dos modernos, práticos e rápidos microondas.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

3 comentários:

MILHAFRE disse...

Interessantes retratos do nosso viver antigo.

Saúdo o autor destas crónicas pelo seu empenho em recordar todos estes episódios da nossa vivência insular.

Transmitir às actuais gerações o que custava viver nestas Ilhas abandonadas (quer pela Corôa, quer pela República e Estado Novo) e todos estes ensinamentos e aguarelas de vida, é muito importante, para que saibam o que é que custou aos seus antepassados, avós e pais, viver e trabalhar aqui.

Os meus parabéns ao ilustre Autor destas crónicas.

Anónimo disse...

Os Açores foram penosamente construidos assim. Com muito suor, com muito trabalho e com muita abnegação.

Para chegarmos aqui, houve um percurso. E não se pode planear o futuro sem conhecer o nosso passado.

Anónimo disse...

Sr.Carlos
Mais uma vez os meus parabéns pelos excelentes trabalhos que, com uma qualidade imensa,de forma e de conteúdo,e com indiscutível interesse histórico, vem paulatinamente publicando.Para não repetir, faço também minhas as palavras dos comentadores que me antecedem,os quais felicito pelo bom senso e oportunida dos comentários produzidos, que além justamente positivos,reforçam o sentido das palavras do autor e ajudam a compreender o alcance e interesse das mesmas.
Muito obrigados.
Um Florentino.