«Brumas e Escarpas» #44
A pesca à baleia na Fajã Grande
Todos os anos, ainda em plena Primavera, logo a seguir à Páscoa, chegavam à Fajã Grande, vindos da ilha do Pico, da vila de Santa Cruz e, sobretudo, das Lajes, homens cuja actividade principal era a baleação. Eram geralmente os oficiais e os arpoadores, mas também alguns marinheiros e, até, o vigia. Muitos deles traziam a família, alugavam casa e viviam na Fajã durante todo o Verão. A maior parte voltava na época seguinte e alguns fizeram-no anos a fio. A estes homens, profissionais experientes da caça à baleia, juntavam-se muitos outros baleeiros, bem menos experientes e pouco sabedores, naturais e residentes na Fajã, que eram agricultores e criadores de gado, mas com uma vontade gigantesca de também se dedicarem à baleação, reforçando assim com os ganhos obtidos, o seu parco e débil orçamento familiar. Muitos destes homens, arreavam pela primeira, sem conhecimentos e sem prática, mas, no entanto e aos poucos, iam aprendendo, ganhando experiência, adquirindo sabedoria tornando-se baleeiros competentes e, sobretudo, capazes de conciliar as suas actividades agrícolas e pecuárias com a pesca à baleia, que afinal só acontecia nos meses de Verão e nos dias em que, por indicação do vigia, se avistava baleia. Assim nos restantes dias podiam dedicar-se à sua actividade agrícola, trabalhando os seus campos e cuidando do seu gado.
Tudo começava com o vigia que, todos os dias, ainda noite escura, se deslocava para a Casa da Vigia, situado a bem lá no alto do Pico da Vigia e que, munido de uns binóculos potentíssimos, vigiava, com muita atenção e esmero, todo o oceano desde a Rocha do Risco, quase abrangendo os mares de Ponta Delgada e do Corvo até à rocha dos Bredos, na Fajãzinha.
Mal avistava uma baleia o vigia atirava uma bomba, se fosse cardume, um foguete. De imediato um magote de homens, muitos deles abandonando os trabalhos dos campos, desatavam a correr, em direcção ao Porto Velho, onde estavam varados os botes e ancorada a Santa Teresinha, numa correria louca, espavorida e atropelada. Não havia contemplação, nem tolerância! Quem estivesse a ordenhar as vacas, a tirar o esterco ao palheiro, a ceifar erva numa lagoa ou fetos no Pocestinho, a sachar milho nas Furnas ou plantar inhames no Delgado, teria que deixar a meio o que estava a fazer e se trouxesse às costas um molho de lenha ou um cesto de inhames teria que o largar sobre a parede do descansadouro mais próximo e desandar, o mais rápido possível, na direcção do mar. Algum familiar mais chegado ou amigo mais próximo havia de lhe terminar a tarefa. Os velhos da freguesia, que já não podiam arrear e as crianças, se não houvesse escola, também se encaminhavam para o Porto, é verdade que numa correria menos comprometida, com o objectivo de se postarem à Eira, em cima do Cais, no Farol ou no Matadouro, a vê-los partir, os velhos a recordar os tempos de outrora, as crianças a sonhar que um dia ainda haviam de ser baleeiros. A baleação, na Fajã Grande, como que estava no sangue de todos. As mulheres também não se haviam aquietado com o foguete. Antes, rápidas e céleres, tentavam chegar a tempo de lançar de terra para dentro dos botes já na água, os agasalhos e as sacas ou cestas cheias de pão, de bolo, de queijo, de linguiça e de torresmos, uma garrafa de vinho ou café, porque o dia poderia ser muito longo e a noite prolongar-se pela madrugada. Depois todos regressavam a casa, encaminhando-se, de seguida, para os campos para finalizarem as tarefas inacabadas ou para iniciarem outras.
Se o gasolina ainda não estava pronto, os botes partiam, à vela ou a remos se não soprasse aragem favorável, na procura do cetáceo, de acordo com a indicação do vigia. Em breve a Santa Teresinha os apanhava, rebocando-os em alta velocidade. Era imperioso não perder tempo e chegar o mais rápido possível perto da baleia. Uma bandeira hasteada lá no alto do Pico e um pano da mesma cor, colocado nas encostas do Canto do Areal, indicavam a localização das baleias e a direcção que as embarcações deviam seguir.
Finalmente os botes aproximavam-se das baleias, enquanto o gasolina se afastava para que os barulhos do motor não as assustasse, pois qualquer ruído estranho podia amedrontá-las, fazendo com que se afastassem. Sob as ordens do mestre que orientava a direcção e o movimento do bote com remo “esparrel”, o trancador, um dos homens mais valentes da companha, colocava-se, com os pés bem firmes na proa do bote, de arpão em riste, à espera de que a baleia voltasse à tona para lhe atirar em cheio.
Depois era o inferno! Uma vez ferido, o cetáceo ora se lançava numa louca correria ora mergulhava nas profundezas do oceano, com o risco de arrastar bote e marinheiros que deixavam correr a corda do arpão, guardada numa selha e bem ensebada para que deslizasse menos perigosamente pela borda fora. O bote seguia o cetáceo numa correria cada vez mais alucinante, com um marinheiro de facalhão em riste para cortar a corda, caso o animal não parasse ou se enfiasse pelos fundos do oceano. A maioria das vezes a baleia, exausta e com necessidade de respirar, voltava à tona e reaparecia. Era então a vez da Santa Teresinha tomar parte na batalha e, aproximando-se com uma lança lhe atirar golpes sucessivos até, para gáudio de todos, matar por completo o cetáceo.
Finalmente o reboque até à fábrica do Boqueirão em Santa Cruz, tarefa que geralmente era realizada pelo gasolina, enquanto os botes, agora a remos e muito lentamente navegavam em direcção ao Porto Velho, onde eram aguardados e saudados, já noite escura, por uma pequena multidão, iluminando o porto com lanternas de petróleo.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».