«Brumas e Escarpas» #65
As furnas da Rocha da Fajã Grande
Quem antigamente subia a Rocha da Fajã Grande, dia após dia, a fim de ir tirar o leite às vacas que pastavam no Mato durante o Verão, que no Inverno só havia gado alfeiro naqueles descampados, ou mesmo quem a escalasse apenas esporadicamente no cumprimento de tarefas fortuitas, como ceifar feitos, cortar bracéu, ir buscar queirós para a matança, apanhar amoras para fazer doce, ir ao Fio ou até simplesmente quem pretendesse viajar para os Cedros ou para Santa Cruz, neste caso para evitar a travessia da Ribeira Grande junto à Fajãzinha, encontrava, ao longo daquelas íngremes e sinuosas trinta e duas voltas, três furnas: a do Peito, a da Caixa e a dos Dez Réis.
As furnas eram concavidades encravadas na rocha, mesmo à beirinha do caminho, com formatos diferentes, com tamanhos desiguais e com fins diversificados, embora todas elas constituíssem marcos significativos na subida de tão gigantesca e descomunal escarpa.
A Furna do Peito era a primeira, a maior e a mais útil. Situava-se logo no início da subida, na décima volta e tinha a forma de uma grande caverna encravada num sítio mais saliente e pedregoso da Rocha, cuja forma se assemelhava a um gigantesco peito humano, razão óbvia do seu epíteto. Esta furna tinha uma dupla finalidade: ora servia de abrigo da chuva, de protecção dos ventos e resguardo dos temporais, ora de lugar de descanso, de repouso e de retoma de fôlego. Mas era também uma espécie de templo onde entravam os caminhantes, sobretudo os que sentiam mais medo e ostentavam maiores dificuldades durante a subida, a fim de obterem ânimo, calma, tranquilidade e, sobretudo, a esperança de chegar ao cimo livres de qualquer perigo ou salvos duma eventual derrocada. Por isso havia sido colocada, numa das paredes interiores da furna, uma grande cruz de madeira e ao redor de todo o seu interior havia-se construído uma espécie de bancada feita de pedras toscas, onde os transeuntes que ali entravam se sentavam ou a descansar e a retemperar forças para continuar a subida, ou a implorar a Deus, à Virgem e a todos os Santos, Anjos e Arcanjos que impedissem o desabamento por ali abaixo de pedras ou ribanceiras, pelo menos enquanto durasse a extenuante e morosa caminhada até ao acimo.
Por sua vez a Furna da Caixa, situada a meio da Rocha, era bastante mais pequena, tinha muito pouca profundidade e situava-se rigorosamente a meio da escalada. Quem ali chegava, pelo menos tinha a certeza de que já galgara a primeira metade daquela abstrusa, enigmática e escabrosa subida. Como o seu tamanho e profundidade, de tão escassos que eram, não permitiam a um cristão sequer ali entrar para descansar ou abrigar-se, alguém construíra nos seus limítrofes um logradouro, com um muro protector e uma banqueta em forma de semicírculo e que servia simultaneamente de local de descanso e de miradouro. Na realidade, dali, enquanto se descansava, podia-se observar a Fajã como se de uma vista aérea se tratasse. Ao perto o verde das relvas da Figueira e das Águas e as terras de mato do Pocestinho e dos Paus Brancos; mais além as belgas da Bandeja e das Queimadas, os cerrados do Alagoeiro e do Mimoio e depois as casas, com o vermelho escuro dos telhados a misturarem-se com o verde amarelado das courelas. Por fim e a delimitar a imensa fajã a mancha negra do baixio, recortada por caneiros e enseadas a entrelaçarem-se com o oceano imenso e infinito onde se haviam cravado desavergonhadamente, lá ao longe, a Baixa Rasa e o Monchique.
Finalmente, logo a seguir à Fonte Vermelha, a mítica Furna dos Dez Réis, a última, a mais pequena e, provavelmente a mais profunda. Tão pequena que nem uma cabeça humana caberia na sua entrada, tão funda que não se lhe conhecia a profundeza. Era no entanto uma das mais importantes e mais almejada de atingir por todos os que subiam aquele inexaurível alcantil. Por um lado, chegar à Furna dos Dez Réis era ter a certeza de que faltavam apenas dez voltas para chegar à cancela do Mancebo, no cimo da Rocha. Por outro lado aquela furna tinha um poder mágico e sobrenatural: quem metesse lá dentro uma mão bem fechada e formulasse um desejo que não fosse muito ambicioso, esse desejo ser-lhe-ia concedido.
Quanto a mim, todas as vezes que por ali passava, quando criança, metia a mão, firmemente fechada, pela furna dentro e formulava o desejo de chegar ao cimo da Rocha são e salvo. E confesso que esse desiderato, não sei se pela força milagrosa da furna, se pela minha coragem e valentia, sempre me foi concedido.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».
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