sábado, 2 de novembro de 2013

«Brumas e Escarpas» #66

O Dia dos Defuntos

Na ilha das Flores, como em todo o orbe católico, celebrava-se com um misto de saudade, tradição e religiosidade o dia 2 de Novembro, vulgarmente denominado Dia dos Defuntos.

Mas, na Fajã Grande, o culto e devoção das almas, com verdade, envolvia em desmedida dedicação toda a freguesia. Nem os mais descrentes se esquivavam de evocar a memória dos falecidos e sufragar as almas dos familiares que já haviam partido deste Mundo. Daí que, não apenas o dia 2, mas também todos os outros dias de Novembro tivessem uma forma de celebração religiosa específica e muito peculiar.

Durante o ano eram feitas na freguesia duas recolhas ordinárias de ofertas a favor das Almas do Purgatório: em Janeiro, a das línguas do porco e em Novembro, a do milho. No que concerne à oferta das línguas dos porcos, fenómeno estranho e de esconsa clarificação, cada agregado familiar, se assim o entendesse, salgava a língua do seu porco e, algum tempo depois da matança, levava-a para a missa dominical, finda a qual era arrematada no adro da igreja, sendo o dinheiro resultante de cada leilão entregue ao mordomo das almas, que o guardava. A recolha do milho, por sua vez, era feita no dia de Todos os Santos. Grupos de homens munidos de cestos ou sacos de serapilheira percorriam as ruas da freguesia e, batendo à porta de cada casa, gritavam: “Milho pr’ás almas”. Era também um costume ancestral e que tinha como objectivo recolher as ofertas de milho, cujo dinheiro resultante da venda também era destinado às benditas almas. Esta actividade era devidamente planificada e programada pelo mordomo das almas, que dias antes requisitava os homens necessários para fazer o peditório. Convidava também uma grande quantidade de mulheres para, durante e após o peditório, recolher o milho, debulhá-lo e enchê-lo em sacos. O milho posteriormente era vendido e esse dinheiro, juntamente com o do leilão das línguas e o de outras ofertas, era entregue ao pároco. Destinava-se a celebrar missas e rezar os responsos, todos os dias durante o mês de Novembro, por alma dos defuntos de todas as famílias da freguesia. Além disso, ainda eram feitas, ao longo do ano e por iniciativas individuais, sempre resultantes de promessas, outros peditórios e recolhas extraordinárias de produtos agrícolas que também eram vendidos ou leiloados.

Assim, e tendo em conta o dinheiro obtido através de todas estas derramas e ofertas, o pároco calculava o número de missas a celebrar. Depois dividia o número de casas da paróquia por esse número e estabelecia uma espécie de calendário, sendo que em cada dia do mês, excepto ao domingo, a missa era celebrada por alma dos defuntos de um conjunto de famílias. Este conjunto era determinado, grosso modo, pelo quociente do número de casas a dividir pelo número de missas. Nenhuma casa era excluída, mesmo que tivesse contribuído com pouco ou nem sequer tivesse colaborado na oferta de géneros ou na recolha de donativos.

Na tarde do Dia de Todos os Santos procedia-se à ornamentação e limpeza do cemitério, enfeitando cada família as sepulturas dos seus antepassados. No dia 2 de manhã cedo era celebrada a primeira missa, Missa in die obito com paramentos pretos, sendo inicialmente montada a essa no centro do cruzeiro, com seis castiçais ao redor e um tapete negro a cobri-la, como se de um funeral se tratasse. Finda a missa, o pároco trocava a casula preta pela capa de asperges da mesma cor e rezava os responsos dos defuntos. Seguia-se a procissão ao cemitério, durante a qual os sinos dobravam a finados e onde, novamente, eram rezados responsos e benzidas as sepulturas. De regresso à igreja eram celebradas mais duas missas, de acordo com as normas litúrgicas então vigentes. As Trindades da noite do dia 1 e da manhã e noite do dia 2 eram acompanhadas do dobrar a finados.

Quando nós crianças, ainda indiferentes a tais celebrações, perguntávamos de quem era o enterro ou quem tinha morrido, diziam-nos os adultos que era o enterro do Velho Laranjinho, figura mítica que representava todos os finados da freguesia. Também era costume no dia 2 de Novembro cozer pão e assar abóboras no forno, em louvor das almas do purgatório, mas o forno deveria ser apagado sempre antes do toque das Trindades, caso contrário, dizia-se, as almas dos nossos antepassados continuariam a ser queimadas pelo santo fogo do Purgatório.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

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