«Brumas e Escarpas» #72
A Fajã Grande dos anos 1950 a três tempos
III - Quando a tarde descia
Após um “jantar” frugal – batatas ou inhames com uma limitada porção de peixe, ou conduto de porco racionado ou uma torta de ovos, às vezes simplesmente batatas de mangão – impunha-se novamente um caminhar apressado e lesto para os campos, porque a tarde descia rápida, a fim de que se desse continuidade ou se terminassem as tarefas iniciadas de manhã. Muitas vezes havia que substituí-las por outras, impossíveis de adiar. No primeiro caso, as mulheres iam aos campos levar o jantar aos que ali trabalhavam. Poupava-se tempo e ganhava-se no avanço do trabalho. Havia no entanto muitas tardes em que era imperioso homens e mulheres dedicarem-se a outras tarefas, como a apanha das batatas, o plantar e cortar as couves, acarretar esterco para os campos ou, na maioria das vezes, trabalhar as terras mais próximas de casa e as situadas à beira-mar. Nas tardes de Verão, no entanto, era quase impossível trabalhar nos campos da Fajã Grande. A razão era simples: a freguesia situa-se, como o nome indica, numa “fajã”, ou seja, num terreno baixo por trás do qual existe uma rocha. Só que, neste caso, a rocha de tão alta e inclinada que era, fazia jus a que o Sol nela se reflectisse e retrocedesse sobre o povoado, como que redobrando a força, a intensidade e o calor. Um autêntico forno! Por isso os homens passavam as tardes sentados à sombra das casas, conversando e falquejando. No Inverno, ao invés, tardes havia em que era impossível trabalhar, neste caso devido à chuva e ao mau tempo.
Em contrapartida trabalhava-se à tardinha e durante uma boa parte da noite para compensar as “folgas” das tardes calorentas. Estes trabalhos relacionavam-se sobretudo com o tratamento e ordenha do gado e a limpeza dos palheiros, esta uma das tarefas mais degradantes, asquerosas, conspurcas, imundas e enlameadas que os homens eram forçados a executar. Munidos do “garfo de tirar esterco”, puxavam, rapavam, remexiam, amontoavam, espetavam toda aquela imundície acumulada nos palheiros e padejavam-na às garfadas para um monte de esterco que dia após dia ia crescendo e fermentando fora da porta do palheiro, levantando um cheiro horroroso, promíscuo, mefítico, aberrante que penetrava pelas frestas e paredes das casas contíguas e que se defluía, emanava e dispersava pelos arredores. Uma ou duas vezes por semana também era necessário despejar a poça, com odores e cheiros ainda mais mefíticos. O seu conteúdo era padejado com um caneco velho para dentro das “latas da urina”, ou seja, uns enormes vasilhames de madeira, exclusivamente usados para este fim e que depois de cheios eram transportados aos ombros presos num pau, um atrás das costas e outro à frente, para alimentar e fazer crescer as caseiras, as batatas doces e as couves que floresciam nas terras do Porto, das Furnas e do Areal.
Trabalhos cansativos e degradantes que custavam e que doíam, realizados, como Fernando Pessoa escreveu, enquanto a sombra da tarde descia, emersa nas canseiras do fim do dia.
O Sol às casas, como a montes,
Vagamente doura.
Na cidade sem horizontes
Uma tristeza loura.
Nesta hora mais que em outra, choro
O que perdi.
Em cinza e ouro o rememoro
E nunca o vi.
Felicidade por nascer,
Mágoa a acabar,
Ânsia de só aquilo ser
Que há-de ficar.
Sussurro sem que se ouça, palma
Da isenção.
Ó tarde, fica noite, e alma
Tenha perdão.
E nesta “cidade sem horizontes” (entenda-se: nesta freguesia sem horizontes) chegava uma tristeza loura, um suplício a que estiveram rigorosa e permanentemente condenados, em pleno século XX, os nossos avós, os nossos pais e os nossos irmãos. Talvez por estas e por outras razões e porque, voltando ao poema de Pessoa, havia uma felicidade por nascer, uma mágoa a acabar, e, por isso, com uma enorme ânsia de só aquilo ser, muitos escapuliram para a América e para o Canadá.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».
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