terça-feira, 4 de março de 2014

«Brumas e Escarpas» #69

“Dia D’Intrude”

Na década de 1950, a terça-feira de Carnaval na Fajã Grande chamada popularmente por Dia d’Intrude, assim como o domingo que a antecedia e que era designado por D’mingue Gorde, eram dias consagrados ao divertimento e à folia e, estranhamente, festejados e celebrados mais entusiasticamente do que o Natal ou a Páscoa, as maiores festas cristãs do calendário litúrgico e religioso, ambas plenas de costumes, de tradições e de festejos noutras regiões do país. Não havia casa, incluindo as mais pobres, que não tivesse o cardápio melhorado naqueles dias, do qual constava, infalivelmente, galo ou galinha guisado, acompanhado com inhames e filhoses. A maioria dos homens, sobretudo os mais jovens, divertiam-se à brava mascarando-se, fantasiando-se e disfarçando-se de formas estranhas, por vezes esquisitas e até assustadoras e com os mais extravagantes trajes, numa completa transformação, não apenas do seu aspecto físico mas também da sua personalidade e da sua maneira de ser, chegando mesmo a alterar as suas formas físicas e o próprio sexo. Incompreensivelmente, às mulheres era absolutamente “proibido” participar activamente em todos os folguedos destes dias e muito menos mascarar-se ou fantasiar-se, sendo-lhes apenas permitido assistir como espectadoras passivas a todas as brincadeiras, pirraças, assaltos alegres às casas de uns e outros, assim como às danças de entrudo que, apesar de autênticas manifestações da cultura popular, também estavam interditas ao sexo feminino, talvez por influência de crenças e convicções religiosas. Estranhamente eram alguns homens que se fantasiavam de mulher para formarem pares e dançarem uns com os outros, nas chamadas “danças de Carnaval”.

Mas estes dias na Fajã Grande eram realmente dias de grande festança e alegria. Em primeiro lugar ocupavam lugar de destaque as célebres e tradicionais Danças de Entrudo, não apenas as que se organizavam na freguesia, mas até algumas vindas de outras freguesias, geralmente da Fajãzinha. Ensaiadas e preparadas muitas semanas antes, no que dizia respeito à letra e música de cada uma, ao fabrico e arranjo de roupas e adereços e aos ensaios das cantigas e da própria dança. Entre as brincadeiras, a da água era a rainha. Nesse dia toda e qualquer pessoa, incluindo as mulheres, podiam atirar água para cima de outrem que ninguém levava a mal. Só que depois vinha a “vingança” por parte daquele ou daquela que inicialmente havia sido molhado. E então aconteciam autênticas batalhas de água, com o objectivo de ver quem atirava mais água para cima de um “adversário”, servindo para tal tudo o que fosse vasilhame manejável. Muitas vezes, à água misturava-se farinha e, eventualmente, outros ingredientes menos aconselháveis.

Finalmente, em cada casa o almoço era substancialmente melhorado. No domingo gordo havia filhoses doiradas, salpicadas com açúcar e canela, saborosas, deliciosas, quase celestiais de se comer e chorar por mais. Antes porém o galo, morto de véspera, guardado em vinha-d’alhos de um dia para o outro. Depois de rosado e guisado, era colocado à mesa a fumegar, juntamente com uma travessa de inhames, a encher a casa de odores perfumados e os comensais de apetites devoradores. Na terça-feira tudo se repetia, acrescentando-se ao galo ou substituindo-o por torresmos e linguiça e uma morcela ou outra que para tal se havia guardado da altura da matança.

Na realidade, sendo o Entrudo ou Carnaval uma festa de lazer e divertimento, mas cujo significado e vivências se associam à cultura de cada povo, a Fajã Grande também o celebrava à sua maneira e de acordo com as suas potencialidades, não devendo, no entanto, ser estranha a estes festejos alguma influência oriunda de outras localidades, naturalmente trazida pelos primeiros povoadores, nomeadamente no que dizia respeito às danças e sobretudo à tradição de nestas circular um velho ou uma velha. É que em muitas localidades do Norte de Portugal celebra-se nestes dias o “Culto do Velho ou da Velha”, que simboliza uma espécie de despedida do Inverno e o acolhimento da Primavera que está prestes a chegar. Tudo isto, talvez, vestígios de cultos pagãos muito antigos. Na Fajã Grande também se designava o Carnaval por “Velho Entrudo”.

Os festejos de Carnaval na Fajã Grande, no entanto, também tinham um outro significado importante, na medida em que representavam uma espécie de subconsciente colectivo, dado que era uma festa de liberdade, onde tudo era permitido fazer-se, e onde normas, preceitos e costumes se esqueciam para permanecer durante três dias o quase "vale tudo", libertando-se assim o sofrimento, a dor e a vida dorida daquele povo.

Por mim confesso que em criança era tanto o medo que eu tinha dos mascarados e dos velhos das danças que não saía de casa naqueles dias. Como era geralmente no “Dia d’Intrude” que meu pai fazia o canteiro da batata doce, na terra da porta junto ao monte do estrume do gado, eu pelava-me para ficar com ele e o ajudar nesse dia, encontrando assim um excelente pretexto para me evadir dos festejos carnavalescos e sobretudo de ser agarrado pelos “velhos” mascarados das danças que se atiravam aos “pimpolhos como cães a bofes”.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

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