«Brumas e Escarpas» #70
A Fajã Grande dos anos 1950 a três tempos
I - Ao romper da aurora
Na década de 1950 na Fajã Grande dava-se, inequivocamente, cumprimento ao estabelecido no velho adágio “deitar cedo e cedo erguer...”, pelo que o povo caminhava para os campos e trabalhava de acordo com a popular modinha beirã “Ao romper da bela aurora, vai o pastorzinho...”
Na realidade, naqueles longínquos anos, todos os dias, incluindo domingos, dias santos, feriados e dias santos abolidos, o dia de trabalho iniciava-se altas horas da madrugada. No Inverno, os homens saíam de casa com destino aos campos, ainda noite escura. Havia tarefas que, necessariamente, deveriam ser feitas alta madrugada. A mais cansativa, para quem tinha gado bovino, era a de ir ceifar um ou dois molhos de erva às lagoas – terrenos onde a erva crescia no meio de água – acarretando-a às costas para os palheiros, onde o gado a aguardava como alimento preferido. A erva, para manter a qualidade e a frescura de bom alimento, devia ser ceifada e guardada antes do Sol nascer. Era uma tarefa cansativa e desgastante, não apenas no ceifar mas sobretudo no carregar com os molhos às costas. Para além de serem muito pesados, pingavam enorme quantidade de água que escorria pelos ombros e costas dos que os carregavam, encharcando-os, por vezes, da cabeça aos pés. Outra tarefa, embora mais leve e menos cansativa e, por isso mesmo, atribuída geralmente às mulheres e às crianças, era a de ir buscar ou levar o gado às relvas, o que também era feito de madrugada. O gado devia evitar o calor do dia ou o frio da noite e ser ordenhado a tempo de o leite ser entregue nas máquinas. Assim, uma outra tarefa que se impunha era a da ordenha e do transporte do leite para os sítios onde era desnatado. Só depois, por vezes já bastante tarde, as mulheres faziam o café, misturando alguns grãos do dito cujo com chicória, cevada e, por vezes até favas ou milho torrado, tudo devidamente moído, em água a ferver. Despejado em grandes tigelas misturava-se um pouco de leite. O almoço, como então se chamava a primeira refeição do dia, para além do café bem quentinho, aromático e fumegante, incluía pão de milho ou bolo, geralmente acompanhado com queijo caseiro ou doce. O pão de trigo era apanágio dos dias de festa e, quando o de milho escasseava, recorria-se a bolo do tijolo ou a papas fritas, quando estas sobravam da véspera. Quando o pão de milho era mais envelhecido e rijo ou já roçava o gosto azedo do bolor, fritava-se em banha de porco, sendo que muitas vezes as fatias, antes de fritas, eram passadas por ovo batido. Nesses dias, considerava-se o almoço um luxo. Só então se partia para os campos para as tarefas da manhã.
Ao romper da bela aurora,
Sai o pastor da choupana.
Vem gritando em altas vozes:
- Muito padece quem ama
Muito padece quem ama,
Mais padece quem namora.
Sai o pastor da choupana,
Ao romper da bela aurora
Não empobrece ninguém.
Assim como não enrica.
Não empobrece ninguém
Assim como não enrica.
Se na bela e popular canção beirã substituíssemos a palavra “ama” por “trabalha”, embora perdendo a rima e desajustando a métrica, ganharíamos um interessante e significativo hino ao árduo labor que, quer nas frescas madrugadas de Verão, quer nas tempestuosas e escuras manhãs de Inverno, homens, mulheres e crianças realizavam na Fajã Grande, na década de cinquenta do século passado.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».
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