«Brumas e Escarpas» #77
Bois de sabugo
O sobrado da velha cozinha da minha casa era o meu mundo. Mundo débil, abstruso, indefinido e obliterado mas fantasmagórico, cativante e sedutor. Mundo exíguo, aborrido, impetuoso e esburacado mas desvairado, quimérico e encantador.
A madeira do soalho, com o tempo e com o sucessivo e quotidiano sapateado de quatro ou cinco gerações, corrompera-se, apodrecendo aqui e além, adquirindo enormes e descomunais buracos que meu pai ia tapando. Para tal, pregava-lhes em cima pedaços de madeira, uns trazidos pelo mar e que ele ia encontrando e recolhendo, nas suas idas e vindas ao cerrado das Furnas ou ao curral do Canto do Areal, outros retirados das caixas de sabão que um outro comerciante de vez em quando se desfazia, oferecendo-as a quem chegava primeiro ou a quem tinha o rol da caderneta limpo, que era o caso de meu progenitor. O sobrado adquiria, assim, uma irregularidade abominável e uma sinuosidade irreverente, sobretudo para a minha mãe, que em dias de lavagem da cozinha era forçada a escarafunchar com mais cuidado e redobrada atenção os recônditos dos remendos. Como consequência, ora esgarçava uma ou outra unha ora espetava algum estrepe nos dedos, resultante da aspereza dos pedaços de madeira. Como meu pai não tinha plaina, pregava-os na sua pureza original... com farripas e tudo. Até meu pai, apesar de autor daquela aberrante, invulgar e indesejada proeza, também se chateava de sobremaneira, quando empeçava num ou chavascava os dedos dos pés noutro.
Eu é que nada me ralava com aquele acervo de irregulares saliências e maquiavélicos altos relevos. Antes pelo contrário adorava-os e por nada deste mundo os substituía pelo quer que fosse. Eles eram a obra perfeita e inédita do meu mundo. Eles consubstanciavam a excelsa plenitude dos meus sonhos. Eles maculavam de mitos enigmáticos e sublimes o meu imaginário.
É que debaixo do lar, ao lado das achas de lenha picada e empilhada e dos garranchos de incenso amontoados em desalinho momentâneo, havia, nos dias subsequentes à debulha do milho para a moenda, um cesto com os sabugos que restavam das maçarocas e que a minha mãe utilizava para, depois de os encharcar em petróleo, acender o lume. Então eu ia lá e, revirando o cesto até ao fundo, procurava os melhores, os mais felpudos, os mais inebriantes. Se houvesse um vermelho era um delírio!
Pegava então em dois deles, anafava-os, alisava-lhes o pêlo e, transformando-os em bois, baptizava-os. O mais pequeno, ou o vermelho se o houvesse, era o Damasco. O outro, o maior e mais corpulento, o Gigante. Depois amarrava-os na parte que fora a extremidade superior da maçaroca com um fiado que, muito a custo, roubava â minha mãe, de modo a que ficassem presos lado a lado, simulando uma junta de bois, jungida. De se seguida, amarrava outro pedaço de fiado a um pequeno garrancho de incenso em forma de "Vê", com uma das pontas mais curta e prendia esta pequena e simples geringonça à simulada canga dos meus bois. E lá ia, conduzindo-os e tangendo-os com uma aguilhada até às minhas terras, retratadas nos remendos de madeira do velho sobrado. Bem no centro da cozinha, uma, resultante de um remendo quadrado, com uma tira num dos lados a fazer de canada e portal de entrada. Era tal e qual o Descansadouro do meu pai. Outro, junto à porta da frente, resultante de duas tábuas pregadas ao lado uma da outra. Tal e qual a Bandeja do meu avô, muito fértil em batata-doce.
E passava eu horas e horas com a minha junta de bois de sabugo e o meu arado de garrancho de incenso, a lavrar, a gradear e a semear as minhas terras. Depois o milho crescia, sachava-o e entremeava-lhe trevo e erva da casta para, após a apanha do cereal e o corte dos milheiros, colocar os meus bois, amarrados à estaca, refastelando-se, não apenas com as forrageiras mas também com carradas de incenso e erva que eles próprios acarretavam das terras de mato e das lagoas, personificados noutros remendos mais pequenos e distantes, apesar da indignação da minha mãe, que nos seus intensos afazeres e lides domésticas, de vez em quando, tropeçava em min, anestesiado pela sublimidade das minhas brincadeiras, a arrastar-me, ininterruptamente, pelo velho sobrado.
Mas um dia, uma enorme catástrofe havia de abater-se, pondo termo aos meus sonhos e cerceando definitivamente todas as minhas brincadeiras. É que meu pai, farto daquela degradante penúria, pôs à engorda um gueixo e vendeu-o a fim de ser embarcado para Lisboa, decidindo que o dinheiro que ele desse, havia de destinar-se a um soalho novo para a cozinha. Se bem o pensou, melhor o fez...
E lá vieram os homens, com martelos, pés-de-cabra, plainas, enxós, pregos e tábuas aplainadas... Arrancaram o velho soalho, substituíram uma ou outra trave também carcomida e pregaram um soalho novo na minha cozinha, destruindo, desfazendo e acabando de vez com os meus sonhos, com o meu mundo e com os meus bois de sabugo.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».
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