Chegado do Corvo, alagado pingando e um nadinha mareado, salto da "Ariel" no cais de Santa Cruz das Flores. Chove que Deus a dá.
A "Ariel" é a nova lancha de transporte regular de passageiros entre as duas ilhas do Grupo Ocidental, um miminho no panorama dos nossos transportes marítimos inter-ilhas: rápida, confortável, bem equipada em instrumentos de navegação, manobrada por piloto experiente, inspira confiança.
Essa não fora, porém, a impressão inicial quando, às oito e meia da manhã, cheguei ao cais do Corvo para embarcar para as Flores: lá estava ela, a bela "Ariel", balouçando catita no mar já mexidote, com o piloto a bordo e o outro tripulante, sozinho, a tentar desenvencilhar-se dos cabos, nós, bóias, pára-choques, pedras (pedras, sim, a servirem de lastro aos cabos), e toda aquela algaraviada de gestos e objectos que antecedem o zarpar de uma embarcação.
Olhei para tudo aquilo com alguma apreensão: era naquilo, com aquilo, que eu, para evitar ficar fechado no Corvo durante vá lá saber-se quantos dias, ia arrostar a forte ondulação do mar entre as duas ilhas... Mas tinha que ser, e o mínimo que me poderia acontecer era chamar pelo velho sangregório que, por infindas viagens nocturnas entre Terceira e São Miguel, na minha adolescência, me atormentou a bordo dos defuntos [navios] Cedros e Ponta Delgada. O facto de uma senhora corvina, que ia às Flores com bilhete de ida e volta, e pela primeira vez na jovem "Ariel", nos informar a todos – mulher prevenida! – que tomara dois comprimidos para o enjoo, ainda me agravou a apreensão por alguns momentos: e se o pessoal começasse a sangregoriar lá dentro?
Insana preocupação aquela: pior do que viajar num pequeno barco em meio de mar alteroso, com pessoas a vomitarem ao meu lado – uma antecipação por provar –, era aquela coisa incrível de estar eu ali, mai-los outros passageiros e as pessoas que os tinham ido acompanhar e deles se despediam, em riba do cais do Corvo, alagados pingando por mor da chuva que caía – e da falta de um abrigo.
Dadas as dimensões do cais do Corvo e a quantidade de passageiros que ali embarcam e desembarcam, bastaria que lá houvesse um telheiro como aqueles que agora se vêem em todas as paragens das camionetas por essas freguesias e ilhas abaixo.
Mas haver.
Porém, não há: seja por culpa da Câmara, da Administração do Porto, ou vá lá saber-se de quem, quer chova ou faça Sol, os que ali quiserem embarcar ou desembarcar, ou despedir-se ou receber amigos e familiares, têm que o fazer, tenazmente, à soleira ou à chuva. E depois, como foi o meu caso e dos meus companheiros de infortúnio, viajar, alagado pingando, com a roupinha colada ao corpo.
Enquanto esperavam, debaixo de chuva, as pessoas refilavam: “Ao menos que houvesse um contentor aberto, que servisse de abrigo”, “Isto é uma vergonha!”, “Era nestas alturas que a televisão havia de vir aqui”... – e eu, preocupado com o mar e com as minhas roupinhas encharcadas, lá ia prometendo a mim mesmo que lhes haveria de dar voz que se ouvisse, até porque, nesse mesmo dia, o Corvo seria ampla notícia regional por causa da minha visita à Escola Mouzinho da Silveira no âmbito do Parlamento dos Jovens.
Infelizmente, porém, o repórter não se deslocara ao cais.
(Chegado às Flores, vejo que no cais de Santa Cruz também não há abrigo para os passageiros. Não deve ser necessário).
Crónica da autoria de Luís Fagundes Duarte [deputado do Partido Socialista à Assembleia da República], publicada (originalmente) no «Diário Insular», edição de dia 1 de Fevereiro (de 2009).
Saudações florentinas!!