À mercê dos caprichos do nevoeiro
Esta mania de tirar férias no Outono tinha de trazer, um dia, os seus dissabores. A ilha das Flores, a apenas uma hora de avião de São Miguel, acabou por permanecer, teimosa, a quatro dias de distância. Mau tempo oblige, há que reaprender esta subjugação do homem pelos deuses do vento e, principalmente, do nevoeiro - se os açorianos ainda não lhe deram um nome profano, já o deviam ter feito. Chegámos a sobrevoar a ilha e voltar para trás dois segundos antes de o piloto se fazer à pista, por "brusca alteração das condições atmosféricas". É então compreensível a sensação de triunfo que nos abria os sorrisos quando finalmente desembarcámos - e que se manteve apesar de a nossa anfitriã nos perguntar, assim que ficámos ao alcance da sua voz: "Mas porque é que decidiram vir cá em Outubro?".
É verdade, éramos poucos, a juntar aos já de si poucos habitantes da ilha: que tivéssemos reparado, apenas nós e uma solitária alemã de meia-idade, adepta de longos passeios. Este é um daqueles locais únicos no planeta, onde nos sentimos realmente longe de tudo, e a base das operações é muito importante - principalmente quando a tal instabilidade climatérica pode obrigar a alguns períodos de recolhimento. Foi assim que rumámos à Aldeia da Cuada, uma povoação abandonada pelo êxodo migratório para os Estados Unidos e totalmente recuperada, sem mudar uma pedra à sua configuração original, para turismo rural.
É difícil descrever a localização destas casas, uma das zonas mais bonitas da ilha. Tentemos. A aldeia fica na costa oeste da ilha das Flores, num pequeno planalto sobranceiro à foz da ribeira Grande, entre a Fajã Grande e a Fajãzinha. De um lado, o oceano a perder de vista, varrido por focos de luz vindos do céu; do outro, uma falésia imponente que só às vezes se revelava - a si e às cascatas que a percorriam, quedas de água que no Verão são só uma mas se desmultiplicam nos dias mais generosos em chuva de Outubro.
Começávamos assim a responder à pergunta primordial da nossa anfitriã. O vento que assobiava entre as frestas da janela à noite, fazendo-nos sentir numa jangada de pedra no meio do oceano, poderia ser outra resposta. Uma aldeia inteira só para nós e dois patuscos burros, capazes de reciclar caroços de maçã, bonés e o que quer que lhes aparecesse à frente em jeito de oferenda, são outro argumento possível. Tal como a descoberta, após horas de luta com o omnipresente nevoeiro, da cascata do Poço do Bacalhau, que liberta as suas águas de uma altura de 90 metros, pulverizando-se no ar antes de formar uma deliciosa lagoa natural onde se pode tomar banho. OK, nós não pudemos, mas não nos importámos muito.
Nenhuma ilha dos Açores tem como esta, em apenas 143 quilómetros quadrados, tantas cascatas e cursos de água a serpentear pelas encostas e falésias. No seu planalto central, a ilha das Flores ostenta vaidosa nada mais nada menos do que sete lagoas, nascidas de crateras vulcânicas. Só no último dia conseguimos vê-las, com as nuvens a afastarem-se finalmente como se de um ritual de despedida, um prémio de persistência, se tratasse. Cada uma é parte de um caleidoscópio de cores: a lagoa Funda ou Verde, com margens revestidas de hortênsias; a Branca, a Seca, a Comprida, a Rasa, a evocar paragens escocesas; a Lomba e a Funda das Lajes - a maior de todas.
Há que transigir: não vimos no seu esplendor as flores que baptizaram a ilha. Por pouco não conseguíamos pisar a ilha do Corvo, à distância de duas horas de barco: acabámos por ter lugar no único que conseguiu fazer a travessia naquele mês, carregado de gasolina, vacas e outros mantimentos mortos e vivos. E o Caldeirão não revelou o seu lago de sete ilhotas, representação estranha e pictórica de parte do arquipélago. Mas voltámos com a certeza de ter vivido algo único, o que nos dias que correm é muito mais que muito.
Artigo de opinião da jornalista Maria José Margarido, publicado na secção Boa Vida do «Diário de Notícias» em 12 de Agosto de 2006.
Saudações florentinas!!
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