sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Carta a Vasco Cordeiro

Muitos dos acontecimentos que relatei, nas Cartas a César, poderás dizer que desconheces, Vasco. E poderás até acrescentar neles não teres tido qualquer intervenção, logo responsabilidade. Houve realmente, antes da tua "vaga", outros intervenientes, que lutaram pelo estabelecimento da Democracia, da Autonomia e do Partido Socialista. Pertences à geração que já encontrou o PS à beira de conquistar o poder, logo com tudo facilitado. O PS na oposição era muito diferente, e nem contei tudo. Os jovens licenciados que voltavam para a Região eram quase todos "absorvidos" pelo antigo PSD, pelas maiorias absolutas, pelos Governos que mandaram ao longo de 20 anos. Quem sabe o que teria sido de ti, se tivesses voltado nesses tempos, em que a ideologia já era palavra quase vã e predominava a lógica do poder e do interesse? Saltaste para o barco certo, na altura certa. O que nada tem de condenável.

Mas és deputado desde 1996. Lembras-te, certamente, do primeiro mandato do Governo PS e dos primeiros "tiques" de alguma autocracia de Carlos César. Vieram os cursos de formação jurídica apenas para técnicos superiores que estivessem "em sintonia" com a política do Governo. Ficaste calado. Veio o ofício que estabelecia a "obrigação" de funcionários públicos assistirem à posse de um secretário regional. Ficaste calado. Veio o ofício que acompanhava a fotografia do presidente, a aconselhar que se metesse aquilo numa parede das instituições para onde era enviada. Ficaste calado. Conquistada a maioria absoluta, a que se seguiriam mais duas, muitas foram as "cesarianas" às quais sempre esperei que tu, ou alguém com coragem dentro do PS, se opusessem. Mas ficaste calado. Entendi, então, que das duas uma: ou estavas de acordo com tudo o que César decidia; ou não estavas, mas preferias ficar calado, na perfeita consciência de que, se falasses, seguirias o mesmo caminho de todos quantos falaram contra o grande soberano. O que não seria nada do teu interesse.

Só que chegou uma altura em que não podias ficar calado, Vasco. Quando César resolve ir embora e decide que serias um digno sucessor, era o momento de ouro para dizeres "não posso aceitar, isto não é uma monarquia, é um partido político, com militantes aos quais deve ser dada (devolvida) voz, assim funciona a democracia, assim dita a Lei, fico honrado(?) com a escolha, mas seria contra todos os meus princípios aceitar que um homem só ou uma espécie de Comité Central que é a Comissão Regional decidam a sucessão". Não o fizeste. Não sei se pela mesma vaidade que sempre caracterizou o teu antecessor, se por qualquer outra razão, aceitaste e meteste pelas ilhas todas os teus olhos castanhamente ternurentos com a máxima "renovar com confiança". Vasco, Vasco, como se pode ter confiança num homem que não quis saber se os militantes do seu partido nele confiam? Depois, vieste com "ganhar o futuro". Mas como pode ganhar o futuro quem ajuda a hipotecar o presente, pela cumplicidade nos erros do passado?

Poderia falar-te na necessidade de alternância democrática, como suporte da democracia. Poderia dissertar sobre os vícios de uma governação demasiado longa, pois se o poder corrompe o poder absoluto corrompe absolutamente. Mas tudo isso sabes. Espero que percas esta eleição, certamente pelas virtudes da alternância democrática, claro que para acabar com os vícios que o teu antecessor sabiamente foi plantando, obviamente para mandar para casa uma equipa profissional de boys que só te apoiam para manterem os seus jobs. Mas, sobretudo, espero que percas para que seja devolvida ao PS a sua dignidade. Para que se possa regenerar, com confiança digna de tal nome. Para que volte a ser um espaço de debate, em que a voz do mais humilde militante valha tanto quanto a de um aprendiz de imperador. Para que volte a ganhar a humildade que fez dele um grande partido.

Se ganhasses, não serias apenas um homem que ficou calado perante o inaceitável. Serias também o sucessor, embora em linha colateral, de um homem que se comportou como um rei dentro do seu partido e à frente dos destinos destas ilhas. Não sei como alguém se permite aparecer sozinho num cartaz, a dizer que é o "nosso" Presidente. É demasiado sul-americano para o meu gosto. Mas sei que não gostaria nada de ver a mandar quem em toda a sua vida política foi um pau mandado.


António Bulcão

Artigo de opinião originalmente publicado no jornal «Diário Insular», de 3 de Outubro [disponível online apenas para assinantes].
Saudações florentinas!!

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