O náufrago
O Semedo chegou à porta de casa e levantou a taramela num sufoco. Na cozinha, a mulher e a filha seroavam entre cardas, fusos e resmas de lã, admiradas pelo tardio da chegada. A Deolinda foi a primeira a insinuar com suave ironia: - Só agora?! A estas horas, meu pai há muito que havia de estar na cama.
E como o Semedo embatucasse por completo, a mulher sem levantar olho das cardas: - Boa coisa não andaste a urdir! – E, levantando o rosto, sem esmorecer a cardação, prosseguiu – Credo, home! Que cara é essa?! Parece que viste o Eiramá!
O Semedo, a crescer numa tremulação que acicatava cada vez mais o pasmo das duas mulheres, lá foi desembuchando: Fora ali, para os lados do Rolinho das Ovelhas... Ele, o Bosseca, o Zé de Mateus e o Caboz, na mira dos caranguejos, do Canto do Areal ao Rolinho. Eis senão quando avistaram uma embarcação a aproximar-se de terra, junto ao Rolinho. Eles a correr que até parecia que deitavam os bofes pela boca fora... mas qual o quê? Quando lá chegaram, a maldita tinha zarpado. Apenas uma pequena chata, abandonada, a balancear no vaivém da maré. Ao voltarem, deparam-se com gemidos angustiantes. Um vulto de homem, sabia-se lá de onde, que nem americano falava, enfiado na aba de uma pedra, a chorar e a gemer... Pelos vistos tinha sido ali abandonado. Trouxeram-no e, ao chegar ali, bonito serviço! Os outros a pisgarem-se, cada um para seu lado e ele a ficar só, com o homem... fora da porta. Haviam de lhe dar guarida, lá em casa.
A mulher e a filha nem queriam acreditar! Meter em casa um homem, sabia-se lá de onde e de que religião. Àquelas horas da noite... Nem pensar!
Mas no dia seguinte toda a freguesia louvava o Semedo. Fosse da Cochinchina, fosse do Japão, fosse de onde fosse, aquilo era um ser humano. Um gesto muito bonito, o do Semedo.
Mas os rumores não tardaram. Aquele homem devia ser um ateu, um criminoso, um facínora, semelhante ao que há muitos anos também ali desembarcara e, de tão mau que fora, após a morte, por castigo, fora atirado para o Poço do Bacalhau. Que o tivesse deixado, o Semedo, onde o encontrou. Havia de morrer à fome, que é o destino dos criminosos e dos sacripantas! E depois... com uma filha solteira lá em casa... Hum! Não havia de sair coisa boa dali.
Porém, em casa do Semedo todos se afeiçoaram depressa ao suposto náufrago. O homem era delicado, correto, submisso e de trato afável. Apenas um senão: ninguém o entendia e ele não percebia patavina do que lhe diziam e tinha a estranha mania de, todos os dias, tracejar um risco no muro da cerca do porco. Sabia-se apenas que se chamava Dimitri e que, muito provavelmente, devia ser russo e não acreditava em Deus.
Os dias passaram e o Semedo via em Dimitri o filho que nunca tivera e Deolinda apaixonara-se, como nunca. Pior. Dimitri, agora já a balbuciar as primeiras palavras em linguagem que se entendesse, também se declarava em juras de amor, enquanto pela freguesia cada vez mais se comentava, à socapa, que ali havia marosca.
O Semedo, apavorado, foi bater à porta do vigário. Havia que casá-los, quanto antes. Mas para o prebendado, o casamento não servia para encobrir poucas vergonhas e aquele homem era um ateu, vindo de um país onde a religião católica era odiada. Além disso, não tinha papéis que demonstrassem o seu baptismo. Que tirasse o cavalinho da chuva o amigo Semedo que casamento é que não havia de haver.
E não houve, o que não foi obstáculo a que Dimitri e Deolinda se envolvessem, às escondidas dos progenitores, em desvelos e fascinações.
E quando Deolinda não mais pode ocultar a gravidez, o falatório transformou-se em aleivosias insultuosas. A mãe definhou de vergonha e o pai pô-los porta fora, injuriando-os, ameaçando-os, deserdando-os. Poucos dias demorou a ira do Semedo e a debilidade da sua consorte. Foram os primeiros a acudir aos vagidos de um pequerrucho que, numa tarde de Setembro, lhes quebrava o veneno do desgosto e lhes despertava o bálsamo da ternura.
E o pequeno Gervásio crescia entre o enlevo dos pais e a ternura dos avós. O vigário não lhe pode negar o baptismo. A alegria, o encanto e a felicidade reinavam em casa do Semedo e na freguesia já ninguém se lembrava que o pai do pequeno Gervásio era, afinal, um náufrago abandonado na ilha, talvez um criminoso, com quem a Deolinda do Semedo vivia amancebada.
Numa noite, porém, o inesperado aconteceu. Dimitri saiu de casa e nunca mais regressou. De manhã, o Cardoso afirmava a pés juntos que um bergantim se havia aproximado da enseada do Rolinho das Ovelhas e nele tinha visto embarcar um homem. A partir do dia seguinte, todas as tardes depois do pôr-do-sol a Deolinda do Semedo, lavada em lágrimas, sentava-se sobre um rochedo, à beira mar, com o filho ao colo, apontando-lhe um horizonte indefinido.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».