O Fio: parte I - A subida da Rocha
Todos os anos, nos meses de Março e Setembro, na Fajã Grande os Cabeças anunciavam o dia de Fio. Quem tinha ovelhas bravas no baldio ou “concelho” preparava-se da melhor forma para o dia em que mais de metade da freguesia partiria para o Mato a fim de proceder à recolha e tosquia dos ovinos.
No dia marcado todos se levantavam alta madrugada. Os homens e os rapazes caminhavam para o mato, ainda noite escura. De acordo com a indicação dos Cabeças, uns iam pela Burrinha, outros pela Água Branca, outros pelo Queiroal, outros pelo Morro Alto e Pedras Brancas, enquanto alguns ficavam pelo Rochão Grande. Acompanhados pelos cães, protegidos do frio do Mato por grossos casacos e amparados a enormes bordões de incenso ou de araçá, partiam em bandos, arfando em loucas correrias e longas caminhadas, proferindo, em colaboração com os cães, uivos alucinantes e pungentes. Só assim era possível ajuntar as ovelhas bravas em toda zona do baldio, desde o Queiroal à Água Branca e à Burrinha e conduzi-las, depois, até ao “Curral” que ficava no Rochão Tamusgo, mesmo ali por cima da rocha dos Paus Brancos.
Em casa as mulheres enchiam cabazes e cestos de vimes brancos, usados habitualmente para ir lavar a roupa à ribeira, com pratos e tigelas a que sobrepunham postas de peixe frito, torresmos e toros de linguiça, talhadas de inhames, quartos de bolo do tijolo, fatias de pão de milho, pedaços de queijo, um bule cheio de café com leite, algumas maçãs e as tesouras de tosquiar.
Mal o Sol começava a raiar, iniciavam a longa e difícil caminhada em direcção ao “Curral”, a fim de chegarem a tempo para que os homens tivessem a primeira refeição logo a seguir à recolha das ovelhas.
Era no Alagoeiro que se juntavam para iniciar a íngreme subida da Rocha. Carregando pesados cestos e cabazes à cabeça, protegida com uma rodilha de pano, acompanhadas pelas crianças que levavam as cestas e os cabazes mais leves, formavam uma enorme e compacto pelotão que lentamente ia subindo as trinta e duas voltas da Rocha, delineadas em ziguezague, somando degraus após degraus, num escalar muito íngreme e difícil. Ao chegar à Furna do Peito, paravam. Era um dos lugares da Rocha institucionalizado para o descanso. A furna era uma enorme concavidade encravada num sítio mais saliente e pedregoso da Rocha e cuja forma se assemelhava a um gigantesco peito humano, razão óbvia do seu epíteto. Algumas entravam, poisavam os cestos e cabazes no chão e sentavam-se a descansar, enquanto muitas outras permaneciam nos degraus circundantes.
Pouco depois recomeçavam a subida, ora caminhando em descampados rectilíneos, ora escalando degraus feitos de pedras rústicas, protegidos por pequenos bardos de queirós e vinhático. A Fajã, agora, surgia como numa vista aérea, onde se divisava o vermelho escuro dos telhados, misturado com o verde amarelado das courelas, a mancha negra do baixio, recortada por caneiros e enseadas e o azulado do Oceano, no meio do qual o Monchique parecia maior e mais próximo.
As voltas da Rocha sucediam-se umas às outras até ao Descansadouro, onde as mulheres voltavam a poisar os cestos sobre uns muros ali existentes, efectuando um segundo e merecido descanso. Era o meio da subida. Pouco depois reiniciavam a marcha, cada vez mais amarga e mais cansativa.
Finalmente, chegavam à retemperadora Fonte Vermelha! Para além de saciar a sede, na que se dizia ser a melhor água da ilha das Flores, era a certeza de faltarem poucas voltas para o cimo da Rocha.
As mulheres de rosto avermelhado como maçãs, a arfar cansaço, a limpar suor e a proferir imprecações, retiravam os cestos da cabeça, guardavam as rodilhas de pano multicolor debaixo do braço e formavam fila diante da fonte de água miraculosa. Miraculosa porque balsamizava o cansaço, suavizava o esgotamento físico resultante de tão longa e íngreme subida e retemperava as forças e o ânimo para continuar. A água jorrava, incessantemente, de uma pequena e tosca bica, encravada num tufo da Rocha, onde cada um colocava uma folha de incenso ou de sanguinho, para ter acesso mais higiénico e eficiente ao consumo do cristalino e diáfano fiozinho.
Todas bebiam, muitas voltavam a beber e a fonte nunca secava. Corria sempre, dia e noite, jorrando um frágil mas contínuo veio, lá bem do interior da terra. Mesmo que ninguém a procurasse para beber, a água continuava a brotar e caía solitária mas sussurrante, formando, no chão, uma poça que, depois de cheia escoava pelos degraus e encostas da Rocha, transformando-se num pequeno regato.
O pelotão aglomerava-se de novo. A paragem junto à fonte proporcionara às mais retardatárias ocasião para se juntarem à coluna e reiniciar a marcha em conjunto. Finalmente a minúscula furna dos “Dez Reis”, a indicar que faltavam apenas dez voltas para o fim da subida.
Chegar ao cimo da Rocha era um alívio. O cansaço porém convidava a novo descanso, até porque os homens que por ali passavam diariamente haviam construído uma bancada de pedra tosca onde se sentavam a descansar, a conversar e a esperar uns pelos outros, quando vinha do leite do Queiroal. O ar era puro, fresco e exalava um cheiro a poejo e a “erva-néveda”. Além disso, dali podia apreciar-se uma vista deslumbrante. A poente vislumbrava-se a ampla fajã delimitada pelo oceano. Ao longe, a enorme planície da Fajãzinha, ladeada pela Rocha donde irrompiam cascatas de um esbranquiçado flavescente que, ora se perdiam entre o arvoredo, ora se salientavam nos socalcos das ravinas. Lá longe o casario disperso, a perder-se entre os cerrados de milho e os prados verdejantes. Depois a floresta de um verde escurecido onde se escondiam as poucas casitas da Cuada. Finalmente, mais ao perto, a Fajã, com as casinhas aninhadas junto à igreja e protegidas pelo Pico da Vigia e pelo Outeiro. Cercando o enorme semicírculo, o oceano, azul, infinito e cada vez mais inclinado.
Pouco depois a coluna começava a deslizar sobre alfombra fresca e perfumada das relvas, tornando a caminhada mais suave e menos perigosa do que a da Rocha. As casas da Fajã e o Oceano haviam-se perdido de vista. Agora só o verde silencioso e fresco do Mato. Ao fundo o Queiroal povoado de relvas, separadas por tapumes de hortênsias multicolores. Mais aquém, a Ribeira das Casas, na sua infância, com o seu enorme, temível e fundíssimo Caldeirão e, mais ao perto ainda, o Calhau do Touro, que nos dias de vento forte emitia aulidos semelhantes aos dos bovinos, razão porque granjeara aquele nome estranho e esquisito.
Com o Sol já quase a pique o pelotão atingia o tão almejado portal que dava da relva onde se situava o “Curral”. Era uma enorme cancela, feita de paus de cedro, pregados uns nos outros, em rendilhado pouco simétrico, que rodava sobre ganchos de madeira encravados numa grossa parede e fechava-se do lado oposto com uma enorme e desconexa cravelha. Logo a seguir o “Curral”, um fosso rectangular, cavado num canto da relva. Num dos extremos tinha um portal de pedra, que alguém já destapara. Precedia-o um enorme átrio, também cavado na relva e que se ia afunilando até desembocar no próprio “Curral”.
Carlos Fagundes
Este artigo foi (originalmente) publicado [1, 2, 3, 4] no «Pico da Vigia».